quinta-feira, 28 de julho de 2016

Flores e Rebuçados










Sebastião foi comprar rebuçados mas apenas encontrou flores pelo caminho. O facto não lhe agradou. Esperava ele uma nova solução poética para o comércio de guloseimas ou para o fundamental acto de andar. E o que ali ia vendo, bem rasteiro, junto às solas das botas eram as soluções estafadas do costume, habituadas a embelezar o olhar e a toldar a veracidade de um percurso que devia unir, o que não era tarefa pouca, o ponto A ao ponto B, mesmo que A fosse a casa dos avós e B a loja do Sr. Albano, fazendas e mercearias.

Desde que nascera, Sebastião não se contentava com a realidade que, de tão usual, desaparecia na paisagem quente daquela tarde e, por inexpressividade, deixava de ser olhada, pensada e, por isso, desaparecia igualmente do mundo. Habituara-se a exigir um pouco mais de cada situação, e a compra de rebuçados ao Sr. Albano parecia-lhe assunto bem importante para ser somente acompanhado por aquele tapete de flores imóveis que esmaeciam na força do calor.

Mas aí Sebastião entendeu. Afinal, um rebuçado, aquele objecto ou conjunto de objectos que se situariam no ponto B, a loja do Sr. Albano, fazendas e mercearias, seria coisa bem mais volátil ou derretível, como os sonhos que, com o calor ou a emoção onírica, fazem suar e humedecer os lençóis do paciente. Enquanto as flores a resistir à tarde seca e ao ranger dolente dos élitros dos insectos, eram agora, no ponto AA’, a deslocar-se continuamente sobre a linha dos seus passos desde a casa dos avós, o objecto mais perene que o seu olhar, cada vez mais atento, podia reter. As flores, um objecto que ficaria cravado, menos volátil ou derretível, na película perene do seu córtex imaculado de criança.

Nessa altura, Sebastião inverteu a marcha. Guardou as moedas no bolso e colheu dois malmequeres, uma papoila, um dente-de-leão, dois coelhinhos, duas azedas, três espigas de espécies diversas. E voltou ao ponto inicial A, a casa dos avós, um pouco mais satisfeito. Encontrara o fundamento poético para a constância dos passos que, em tempo, faziam dar um piparote certeiro numa pedra ou noutra com a biqueira da bota.


jef, julho 2016

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