Ana Margarida de Carvalho atira-nos à tormenta. Entre o céu
dos pardais e o mar dos naufrágios somos navegados através da metáfora. A Nave
dos Loucos, Robinson Crusoé, Dois Anos de Férias, A Ilha do Tesouro, O Deus das
Moscas, Gulliver, Ulisses… A viagem eterna, ou seja, a viagem sem retorno.
A solidão de uma praia é o mais apetecível ponto de chegada
mas, igualmente, o mais intransigente local para partir. Aqui, Alexandre
O’Neill, José Mário Branco, Caetano Veloso, Dostoievsky, Marisa Monte, Paulo
Varela Gomes…
Que não se espere a benevolência de uma natureza revoltada,
de um Deus inclemente, do passado inconformado.
Assim sempre será!
«A inferior condição do ser humano quando a única força de
que dispõe é a de ter muita fome.»
«Talvez deixar-se dormir, e ir-se assim, embalado num barco
tempestuoso e bêbado que é o próprio corpo.»
«O caos é uma das ordens de Deus, porventura, a lei por ele
mais praticada.»
«Os deuses não nutrem pingo de interesse pela condição humana
e percebem tão pouco de religião.»
Mas devemos continuar. Sempre. O regresso está vedado.
Pela imolação do anho ao sagrado, e são tantas as criaturas
inocentes sacrificadas, a escritora dá largas à veia de narrar o passado dos
passageiros naquela praia de acolhimento infernal até os vir colocar num presente
eternamente inconclusivo e amoral, cravado nas viagens clandestinas de escravos após a abolição da tal lei.
África, Brasil, Portugal.
Como se Ana Margarida de Carvalho nos avisasse. Como se
ouvíssemos dizer que a viagem é perigosa, que a literatura é um lugar
estranho, muito mais implacável do que a morte, bem mais compreensivo do que a
sobrevivência.
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