quarta-feira, 31 de julho de 2024

Sobre o livro «Vida de Artista 2022-2024» de André Ruivo. Passevite / The Inspector Cheese Adventures, 2024.


























































Posso dar-me ao luxo de seguir a carreira de André Ruivo há algumas décadas e de ser colecionador da sua obra editada. Uma enorme generosidade sua. Não sou crítico de arte, nem seguidor assíduo das respectivas modas e tendências. Também sei que André Ruivo anda a reclamar há muito, desenhando, que não é ilustrador!, apesar de quantas vezes não ser devidamente pago como tal.

Contudo, os últimos tomos por ele editados (certamente instigado pelo instantâneo meio digital das redes socias) têm vindo a aprofundar uma veia diária de cronista. Crónicas de dentro de casa e do meio que a rodeia, descrições tão profundas quanto sintomáticas do modo íntimo, aliás muito íntimo, e do meio socio-económico-político que condiciona e estimula o próprio bairro. Aqui sublinho vivamente que falo apenas da sua persona artística, pública porque editada.

Por isso, aqui contrario, também vivamente, a pretensão do autor de não se assumir como ilustrador, pois as crónicas aqui expostas, coleccionando parte do trabalho executado entre os anos 2022 e 2024, são o espelho lógico e cronista da vida do próprio leitor ao longo desses anos. E se estes desenhos também me reflectem, estes desenhos ilustram-me! (Desculpa, André!)

Este álbum, de 126 páginas e com uma dimensão aproximadamente do clássico e confortável A4 (28 x 21 cm) é a consequência lógica de “Vírus” (Xerefé Edições, 2021), porém neste as cores são ainda mais preponderantes, para não dizer excitadas (já que não estamos em pandemia…), facto provocatório das vizinhas imagens desenhadas com traço negro. Assim, o traço negro, definido e amplo, discute taco-a-taco com as suas irmãs coloridas de paleta mais diversa. Afinal, quem provoca quem?

É um livro-diário-anuário para nós reflectirmos num mundo actual e triste, cada vez mais ansioso, talvez depressivo, mas que contém igualmente, não o esqueçamos, a alegria cada vez mais viva e perene do grande artista André Ruivo. O entusiasmo também aqui é narrado!

Que a «Vida de Artista 2022-2024» nos ilumine (e ilustre!, já que sinónimo é) enquanto aguardamos o futuro desenhado do nosso próximo passado!


jef, julho 2024

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Sobre o livro «A Janela Alta» de Raymond Chandler, Colecção Vampiro n.º 40 (nova série) 2021 (1942), Livros do Brasil. Tradução de Maria Dulce Teles de Menezes e Salvato Teles de Menezes.



 







Na escrita de Raymond Chandler, o que soa como complemento é a própria intriga policial. Essa linha rápida que nos leva sem descanso atrás da correria de Philip Marlowe. Claro que sabemos, mesmo antes de começar a leitura, que ele sobreviverá, que descobrirá o mistério e continuará a fazer tilintar o gelo no copo pela noite, sozinho, fumando no pequeno apartamento em Los Angeles.

O fundamento do livro é o requinte da escrita de Raymond Chandler, que se sobrepõe à razão de colocar o herói em Pasadena, tocando à porta de uma grande mansão antiquada, rodeada de acácias de flores brancas e com uma escultura de um pretinho vestido com calças de montar, oferecendo uma argola a quem desejasse prender as rédeas do cavalo imaginário. Na sua pose solitária, Marlowe sente-se irmanado da figurinha, conversando com ela sempre que por lá passa.

Essa descrição é mais sintomática do que saber por que a velha austera, diabolicamente controladora e infatigável bebedora de vinho do Porto, Mrs. Elizabeth Murdock, terá chamado um detective privado, discreto e que não deixasse cair cinza do charuto no chão.

Nem interessa lá muito saber, apesar de ser o centro da história, por que é que o desaparecimento de uma antiga e valiosa moeda de ouro leva a tais acontecimentos, cheios de peripécias e coincidências.

O que importa são as personagens girando nos cenários e tudo o que o autor coloca por trás delas. (Desconheço se o escritor terá tido alguma relação directa com a arte dramática.)

«Uma loura de braços e pernas compridas e de tipo langoroso estava deitada completamente à vontade numa das cadeiras com os pés levantados, apoiados num descanso almofadado e um copo alto e embaciado junto do cotovelo, perto de um balde de gelo em prata e de uma garrafa de scotch. Olhou para nós preguiçosamente enquanto atravessávamos a relva. A dez metros de distância parecia ter montes de classe. A três metros parecia uma coisa feita para ser vista a dez metros.»

A ironia e o atrevimento é a pedra de toque desta escrita que ainda resolve envolver de cumplicidade, quase de ternura, as outras tantas personagens.

Ler Raymond Chandler ilumina e diverte muito as tardes de Verão, ensina a ler e porque não, deixa muitas pistas para quem gosta de escrever.

Nunca digam mal da literatura policial, principalmente a de Raymond Chandler.

Uma nota de especial para a boa tradução de Maria Dulce Teles de Menezes e Salvato Teles de Menezes.

jef, julho 2024

domingo, 28 de julho de 2024

Sobre o livro «Terra de Neve» de Yasunari Kawabata, Biblioteca Sábado, 2009 (1947). Tradução de Armando da Silva Carvalho.



 







No início, uma desconcertante minúcia descritiva da viagem que leva Shimamura em direcção a uma estância de inverno, no norte do Japão. Ele irá reencontrar-se com Komako que, antes de se tornar profissionalmente geisha, ele ali conhecera numa visita anterior. Viagens que se tornaram recorrentes nos anos seguintes. Mas a voz feminina que ali no comboio lhe desperta a atenção e o instinto é a da jovem Yoko que acompanha um moribundo de volta a casa.

Assim, de modo anacrónico, a prolepse antecipa-nos a dúvida sistemática de Shimamura, homem bem resolvido, casado, bem assente na vida citadina de Tóquio. E a esta dúvida sistemática ajusta-se a sistemática e profissional irreverência de Komako que tenta a todo custo correr atendendo a todos os pedidos dos esquiadores que o inverno nevado traz àquelas florestas de áceres.

Aliás, para entender o ritmo deste romance devemos atender à alternância vegetal e social que as estações do ano transportam àquelas paragens. O frio da neve e os temperados passeios primaveris, longamente descritos, tornam-se parte na narrativa, senão a sua essência natural, explicando o modo como varia o humor das personagens. Como certos poemas japoneses de três versos simples.

Deixemo-nos cativar por essa paixão na natureza mas não descansemos. De modo modernista, Yasunari Kawabata leva-nos de um modo ultra-poético até ao final sem uma explicação cabal, sem uma conclusão tranquila, juntando a neve derretida ao incêndio durante a projecção de um filme num celeiro para criação de bichos-da-seda.

Se dermos o tempo necessário à leitura deste livro é impossível não fazermos parar o nosso próprio tempo. 

Quase uma tragédia que me fez lembrar o extraordinário filme de Hiroshi Shimizu «O Som do Nevoeiro» (1956).


jef, julho 2024

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Sobre o livro «De Nome, Esperança» de Margarida Fonseca Santos, Oficina do Livro 2024.



 







Esperança é o nome de uma mulher que vai sendo encontrada e acarinhada por quem com ela se cruza. Uma mulher acarinhada também pelos pais, humildes e trabalhadores, mas que, jovens, a deixaram órfã. Esperança é inteligente, sensível, com enorme capacidade de trabalho e uma memória capaz de decorar de fio a pavio os seis livros que se encontravam lá por casa e que ela narrava à mãe. A mãe depois chamava-lhe louca. Mas com ternura.

Porém, agora Esperança vive num mundo paralelo, de certo modo estruturado numa escrita compulsiva guardada com letra certeira num anuário anacrónico ou fantasioso, talvez mesmo fabuloso, onde os objectos ganham mais vida que os próprios viventes humanos. Esperança ainda é, de certo modo, criança. Uma criança que já veste a pele de adulta mas que não se lhe ajusta ao corpo.

Esperança pode mas não pode viver sozinha. Quem o diz são essas vozes cruzadas, geográfica e temporalmente, que a acolhem e amam mas que, desesperadamente, se vêem impotentes face ao amor que desejam dar mas que, igualmente, não se ajusta ao corpo receptor.

E se a leitura é um modo de comparação lúdica e caótica não posso deixar de me lembrar das figuras sintomáticas dessa sociedade ausente (ou abstracta) para aqueles que não seguem algumas das suas regras – a Milene de «O Vento Assobiando nas Gruas» de Lídia Jorge (Dom Quixote, 2002), a «Myra» de Maria Velho da Costa (Assírio & Alvim, 2008) ou a Eugénia de «Cair para Dentro» de Valério Romão (Abysmo, 2018).

A escrita de Margarida Fonseca Santos é firme, assume o diagnóstico fracturado para se adaptar ao desembaraçar da personalidade de cada um daqueles que contacta com Esperança de modo a que nos apercebamos da doença de Esperança com rigor emocional mas sem nunca cair em maneirismos líricos ou piedosos. Uma escrita rigorosa, dura, sincopada, sem adjectivos, ao jeito do que também acontece na de Filomena Marona Beja.

A literatura é mesmo feita para pessoas como Esperança, pois como diz Tolstoi nessa grande abertura de «Anna Karénina»:

«Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.»


jef, julho 2024

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Sobre o filme «O Amor Segundo Dalva» de Emmanuelle Nicot, 2022


 














Este filme impressionou-me com a realidade da criação da personagem Dalva pela actriz Zelda Samson, com 12 anos na altura. Dalva, raptada pelo pai vivia com ele de modo afectivo e sexual. Dalva amava o pai e desconhecia que amar e fazer amor poderiam ser assuntos dissociáveis. O pai tratava-a como amante-boneca de luxo.

Nada disso vimos a contragosto do cruel e mórbido voyeurismo. Mas ouvimos. Quando a polícia chega ao apartamento na primeira cena a negro após o genérico inicial e a criança chama desesperado por Jacques.

A história é a tentativa de recuperação da infância da criança através do sistema social de acolhimento e da justiça. Sem dramas, sem comiseração mas deixando à distância a sociedade que envolve tanto Dalva, como os pais ou quem dela tem de cuidar. O filme fica longe do comprometimento social. Saudades de Jean-Pierre and Luc Dardenne.

No entanto, ficar-me-á gravado na memória a imagem travestizada de dama antiquada de Zelda Samson. E qualquer coisa me fez lembrar durante todo o filme a linda Romy Schneider “Sissi”.


jef, fevereiro 2024

«O Amor Segundo Dalva» (Dalva) de Emmanuelle Nicot. Com Zelda Samson, Alexis Manenti, Fanta Guirassy, Marie Denarnaud, Jean-Louis Coulloch, Sandrine Blancke, Maia Sandoz, Charlie Drach, Roman Coustère, Roman Coustère Hachez, Abdelmounim Snoussi, Babetida Sadjo, Gilles David, Romane Mouyal, Anne-Laure Penninck, Diego Murgia, Lysa Caugy Vonville, Trancillia Bokungu, Zaire Souchi, Delphine Bibet, Yasmina Maïza, Eva Azevedo de Sousa, Joséphine Lucic, Alain Eloy. Argumento: Emmanuelle Nicot. Produção: Julie Esparbes e Delphine Schmit. Fotografia: Carolina Guimbal. Música: Frédéric Alvarez. Bélgica / França, 2023, Cores, 83 min.

 

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Sobre o filme «A Besta» de Bertrand Bonello, 2023



 


















Há muito que não via um filme tão entediante. Longo e pretensioso. Apesar da belíssima Léa Seydoux que interpreta Gabrielle Monnier, uma personagem que, no futuro, deseja ficar sem emoções através de uma inovadora técnica de nano-cirurgia. Apesar do competente actor George MacKay, um Louis Lewanski que através de várias décadas e locais executa uma espécie de perseguição emocional a Gabrielle. Até que ela não lhe resiste. Ao fim de 146 minutos. Apesar do encantador guarda-roupa oitocentista (Pauline Jacquard), dos cenários interessantes e da música composta pelo próprio realizador.

Mas nem todos podem fazer filmes estranhos, anacrónicos e sem uma estrutura narrativa convencional. Valha-nos Luis Buñuel, Jean Cocteau, Federico Fellini, David Lynch, Monte Hellman, até Leos Carax… Nem todos podem ter a ambição de expor o inexplicável, de tornar belo o que não se entende e, por essa razão, ficarmos a compreender a estética ou até o absurdo.

Não diria propriamente uma perda de tempo pois Léa Seydoux merece os nossos minutos pela sua consistência, talvez melhor, pela sua resistência dramática.

 

jef, fevereiro 2024

«A Besta» (La Bête) de Bertrand Bonello. Com Léa Seydoux, George MacKay, Guslagie Malanda, Dasha Nekrasova, Martin Scali, Elina Löwensohn, Marta Hoskins, Julia Faure, Kester Lovelace, Felicien Pinot, Laurent Lacotte, Pierre-François Garel. Argumento: Bertrand Bonello, Guillaume Bréaud, Benjamin Charbit baseado no conto de Henry James “The Beast in the Jungle”. Produção: Bertrand Bonello. Fotografia: Josée Deshaies. Música: Anna Bonello e Bertrand Bonello. Guarda-roupa: Pauline Jacquard. França / Canadá, 2023, Cores, 146 min.

 

terça-feira, 2 de julho de 2024

Sobre o filme «Ladrão de Casaca» de Alfred Hitchcock, 1955



















Consta na lista dos filmes de Hitchcock que este surge entre a realização de «A Janela Indiscreta» e o «O Terceiro Tiro» numa produção luminosa e incessante entre a altíssima comédia e o mais dramático (porque teatral) do seu melhor suspense. Não é por acaso que o «passageiro» Hitchcock surge impávido sentado ao fundo da camioneta que leva escondido John Robie “the Cat” (Cary Grant) a fugir da polícia francesa da Côte d’Azur. Numa cena a lembrar «O Homem que Sabia de Mais» (1956) e «Os Pássaros» (1963).

Este é o mundo de Alfred Hitchcock: belo, investigador, teatral e cómico.

E não digam que ele era, de certo modo, implacável com as mulheres, pois neste filme é evidente que é The Cat que é manobrado por elas a seu belo prazer e sedução – a deslumbrante Frances Stevens (Grace Kelly), a respectiva matriarca, desabridamente espirituosa, Jessie Stevens (Jessie Royce Landis), a encantadora e sedutora Danielle Foussard (Brigitte Auber), já sem falar na sistemática dona (ou controladora) de casa Germaine (Georgette Anys).

John Robie “the Cat” é amado e odiado por ter pertencido à resistência francesa durante a guerra e, pelos mesmos, odiado por fazer recair sobre si o estigma do pecado da ladroagem de joias de alta linhagem. Contudo, de tudo ele é agora inocente, quase ingénuo, quase pueril acima de tudo perante todas as mais provocadoras e libidinosas tentações vindas por tal coro feminino. Mais desambientado, como peixe fora de água, só mesmo John Williams (H.H. Hughson) que a custo tenta pôr ordem no pânico das seguradores face à recente onde de assaltos.

Hitchcock dá toda a graça ao mundo feminino esgrimindo um imparável e provocatório diálogo literário. Empresta à bela condição masculina o halo mágico da inocência. Molda a Côte d’Azur num colorido cenário para perseguições automóveis, numa época em que não havia drones nem filmagens digitais descartáveis.

Uma alta comédia, exuberante e maravilhosamente amorosa.

 

jef, julho 2024

«Ladrão de Casaca» (To Catch a Thief) de Alfred Hitchcock. Com Cary Grant, Grace Kelly, Jessie Royce Landis, John Williams, Charles Vanel, Brigitte Auber, Jean Martinelli, Georgette Anys. Argumento: John Michael Hayes baseado no romance de David Dodge. Produção: Alfred Hitchcock. Fotografia: Robert Burks. Música: Lyn Murray. EUA, 1955, Cores, 106 min.