Esperança
é o nome de uma mulher que vai sendo encontrada e acarinhada por quem com ela
se cruza. Uma mulher acarinhada também pelos pais, humildes e trabalhadores,
mas que, jovens, a deixaram órfã. Esperança é inteligente, sensível, com enorme
capacidade de trabalho e uma memória capaz de decorar de fio a pavio os seis
livros que se encontravam lá por casa e que ela narrava à mãe. A mãe depois chamava-lhe
louca. Mas com ternura.
Porém, agora Esperança vive num mundo paralelo, de certo modo estruturado numa escrita compulsiva guardada com letra certeira num anuário anacrónico ou fantasioso, talvez mesmo fabuloso, onde os objectos
ganham mais vida que os próprios viventes humanos. Esperança ainda é, de certo
modo, criança. Uma criança que já veste a pele de adulta mas que não se
lhe ajusta ao corpo.
Esperança pode mas não pode viver sozinha. Quem o diz são essas vozes cruzadas, geográfica e temporalmente, que a acolhem e amam mas que, desesperadamente, se vêem impotentes face ao amor que desejam dar mas que, igualmente, não se ajusta ao corpo receptor.
E
se a leitura é um modo de comparação lúdica e caótica não posso deixar de me
lembrar das figuras sintomáticas dessa sociedade ausente (ou abstracta) para aqueles que não seguem algumas das suas regras – a Milene de «O Vento Assobiando nas Gruas»
de Lídia Jorge (Dom Quixote, 2002), a «Myra» de Maria Velho da Costa (Assírio
& Alvim, 2008) ou a Eugénia de «Cair para Dentro» de Valério Romão (Abysmo,
2018).
A
escrita de Margarida Fonseca Santos é firme, assume o diagnóstico fracturado para
se adaptar ao desembaraçar da personalidade de cada um daqueles que contacta com
Esperança de modo a que nos apercebamos da doença de Esperança com rigor emocional
mas sem nunca cair em maneirismos líricos ou piedosos. Uma escrita rigorosa,
dura, sincopada, sem adjectivos, ao jeito do que também acontece na de Filomena Marona Beja.
A
literatura é mesmo feita para pessoas como Esperança, pois como diz Tolstoi
nessa grande abertura de «Anna Karénina»:
«Todas
as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é
infeliz à sua maneira.»
jef,
julho 2024
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