quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Sobre o filme «Breves Encontros» de Kira Muratova, 1967



 


























Entre o tédio de uma casa vazia e num relativo desalinho e a obrigação de um discurso sobre a oportunidade única do urbano voltar a abraçar a agricultura. Valentina (Kira Muratova) integra o comité local e tem o pelouro das vistorias aos apartamentos que vão ser entregues aos munícipes desalojados. Não percebe grande coisa de agricultura. Aguarda o companheiro Maksim (Vladimir Vysotskiy), geólogo, que anda no terreno em prospecção de metais nobres e tem o hábito de cantar. Valentina contrata Nadya (Nina Ruslanova) para empregada doméstica, uma rapariga que vem do campo para a cidade em busca de uma vida melhor.

De um modo luminoso e desabrido, quase comédia quase musical a realizadora vai dando a toada “rato-do-campo rato-da-cidade” com uma simplicidade e um humor difíceis de ultrapassar, um toque ultrarrealista sobre a burocracia soviética, sobre a ruralidade reverente. A brilhante fotografia é de Gennady Karyuk, a música, de Oleg Karavaychuk.

Uma belíssima (quase) comédia sobre a normalidade benevolente e um (quase) triângulo amoroso. Maravilhoso.

 

jef, setembro 2024

«Breves Encontros» (Korotkie Vstrechi) de Kira Muratova. Com Nina Ruslanova, Kira Muratova, Vladimir Vysotskiy, Aleksey Glazyrin, Lidiya Bazilskaya, Olga Viklandt, Valeri Isakov, Tatyana Midnaya, Kirill Marinchenko, Svetlana Nemolyaeva, Grigoriy Kogan. Argumento: Kira Muratova e Leonid Zhukhovitsky. Produção: Odessa Film Studios. Fotografia: Gennady Karyuk. Música: Oleg Karavaychuk. Guarda-Roupa: L. Tolstykh. URSS, 1967, P/B, 96 min.

 

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Sobre o filme «Cidade Portuária» de Ingmar Bergman, 1948


 

























Este parece ser um filme (in)comum, filmado a preto e branco numa cidade europeia fustigada pelo pós-guerra, mostrando a vida difícil dos portos e dos estivadores quando o marinheiro Gösta (Bengt Eklund) chega a Hamnstad e logo se confronta com a tentativa de suicídio por afogamento de Berit (Nine-Christine Jönsson). Duas vidas que se irão cruzar. Gösta toma a própria consciência como uma prisão, Berit sente o mesmo mas pelo seu passado, cuja presença permanece no eterno ricto odioso de sua mãe (Berta Hall). Se as personagens rodam abertas e musicais em torno do primeiro, outras surgem como sinais de agoiro que devem ser afastados em volta de Berit. Contudo, o encontro do casal com Gertrud (Mimi Nelson), uma amiga de Berit ex-colega de reformatório, vem colocar visível a consciência de um e o passado de outro. Aliás, Gertrud é o catalisador do drama e é através dela que o lado, digamos, interior da cidade se desvendará.

Seria um filme (in)comum não fosse ele filmado por Bergman, deslumbrado com o neorrealismo italiano das cidades, das docas e das fábricas, das ruas e dos bailes. Mas tombando sempre para a proximidade dos rostos, para o magnífico enquadramento das cenas no interior dos quartos e das salas, das escadas e das traseiras enclausuradas dos prédios, como claustros. Tudo fotografado de modo sublime por Gunnar Fischer.

E se todos os filmes fossem tão (in)comuns como aqueles filmados por Bergman?


jef, setembro 2024

 

«Cidade Portuária» (Hamnstad) de Ingmar Bergman. Com Nine-Christine Jonsson, Bengt Eklund, Berta Hall, Erik Hell, Mimi Nelson, Birgitta Valberg, Sif Ruud, Britta Billsten, Harry Ahlin, Nils Hallberg, Sven-Eric Gamble, Yngve Nordwall, Nils Dahlgren, Hans Strååt, Erik Hell. Argumento: Olle Lansberg e Ingmar Bergman, baseado no romance de Olle Lansberg “O Ouro e os Muros”. Produção: Harald Molander. Fotografia: Gunnar Fischer. Música: Erland von Koch. Suécia, 1948, P /B, 99 min.

 

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Sobre o filme «Os Fantasmas Divertem-se» de Tim Burton, 1988



 























Todo o Tim Burton e logo na sua segunda longa metragem. Numa furiosa sequência de cenas, planos, cenários, maquetes, marionetas, cores, histórias e moralidades. Temos a história do amoroso e tradicional (mas malogrado) casal Adam e Barbara Maitland (Alec Baldwin e Geena Davis) na sua bela casinha na Nova Inglaterra. Temos o casal de novos-ricos que vêm revolucionar a vivenda lego quase ao estilo «O Meu Tio» de Jacques Tati (1958), Charles e Delia Deetz (Jeffrey Jones e Catherine O'Hara). Temos a maravilhosa Winona Ryder a fazer da jovem filha gótica Lydia Deetz, o espaventoso decorador de interiores Otho (Glenn Shadix) e, por fim, saído da maquete do cemitério da aldeia, o demónio decadente, malcriado e hiperactivo Betelgeuse (Michael Keaton). Tudo ali se encontra como num pesadelo apressado ao som do “Calipso”. O casamento forçado entre o nojento Betelgeuse e a angelical Lydia quase consumado por um aranhiço mecânico, o cenário desértico onde Adam e Barbara tentam fugir de enormes serpentes de duas bocas, os cadáveres do casal de noivos que são chamados pelo médium e se vão desfazendo em pó, a sala de espera e o consultório do mundo morto-vivo, uma espécie de Bauhaus psicadélica onde todos se mexem já ao som da partitura de Danny Elfman.

Como se a enciclopédia Tim Burton fosse convocada para uma soirée dançante mas lhe fosse imposto o funesto tempo de hora e meia, ao fim da qual transformar-se-ia em abóbora. Ou talvez tenha havido alguma outra imposição e a produção o tenha golpeado. O espectador tem de correr sobre as diversas histórias sem tempo para confirmar ou apreciar ou deliciar-se com aquela parafernália de objectos. Apetece fazer parar o filme fotograma a fotograma e respirar fundo sobre cada cor, cada som, cada esgar, cada personagem. Afinal, Alec Baldwin e Geena Davis pouco ali importam e até nem sabem assim tão bem mascarar-se de fantasmas com um lençol.


jef, setembro 2024


«Os Fantasmas Divertem-se» (Beetlejuice) de Tim Burton. Com Alec Baldwin, Geena Davis, Annie McEnroe, Maurice Page, Hugo Stanger, Michael Keaton, Rachel Mittelman, Catherine O'Hara, J. Jay Saunders, Mark Ettlinger, Jeffrey Jones, Winona Ryder, Glenn Shadix, Patrice Martinez, Cindy Daly, Douglas Turner, Carmen Filpi, Simmy Bow, Sylvia Sidney, Robert Goulet. Argumento: Michael McDowell, Warren Skaaren segundo a história Michael McDowell e Larry Wilson. Produção: Michael Bender, Richard Hashimoto. Fotografia: Thomas E. Ackerman. Música:

Danny Elfman. Guarda-roupa: Aggie Guerard Rodgers. EUA, 1988, Cores, 92 min.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Sobre o filme «Bruno Reidal – Confissões de um Assassino» de Vincent Le Port, 2021



 























De onde surge a pulsão sexual. Onde reside a pulsão da morte. Qual o papel da devoção (ou alienação ou repressão) perante o imaginário católico? Como se unem no interior de uma criança e, mais tarde, no desenvolvimento da puberdade.

França rural e seminarista. 1905. Bruno Reidal, 17 anos, entrega-se como culpado e prefere escrever as suas memórias perante um júri que lhe poderá atribuir a condição de doente psiquiátrico.

É a voz do criminoso-doente-culpado-inocente que guia o espectador através de uma sistemática, sóbria e sombria confissão epistolar de alguém que, eternamente e alternadamente, se culpabiliza e se inocenta perante um mundo que surge como medieval ao som das sumptuosas e místicas partituras de Olivier Messiaen.

Tudo nos é relatado pelo olhar de Bruno Reidal. Nada vemos mas também nada nos é ocultado. Nada podemos julgar. Num grande flashback, os minutos finais unem-se ao início do filme e aí somos confrontados com a consumação do sangue que, mais uma vez por confissão, demostra uma descomunal desilusão face à tão aguardada revelação.

Um filme ponderado e quase reverente perante o que não tem solução.

O papel fundamental para o actor Dimitri Doré.

Uma forte reflexão estética e ética oferecida ao espectador.


jef, setembro 2024


«Bruno Reidal – Confissões de um Assassino» (Bruno Reidal, confession d’un meurtrier) de Vincent Le Port. Com Dimitri Doré, Jean-Luc Vincent, Roman Villedieu, Alex Fanguin, Tino Vigier, Nelly Bruel, Ivan Chiodetti, Dominique Legrand, Antoine Brunel, Tristan Chiodetti, René Loyon, Rémy Leboucq, André Salson, Astrid Vialard, Jeanne Fauchier, Gabriel Chiodetti, Nathan Fosse, Nicolas Chiodetti, Esteban Dechambre, Victorien Delpuech, Arnaud Massol. Argumento: Vincent Le Port. Produção: Thierry Lounas, Pierre Emmanuel Urcun, Roy Arida. Fotografia: Michaël Capron. França, 2001, Cores, 101 min.

 

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Sobre o filme «Mulheres Que Esperam» de Ingmar Bergman, 1952


























Numa casa de férias junto a um lago, quatro mulheres aguardam a chegada dos maridos que regressarão mais tarde da cidade. Uma outra, jovem e irmã de uma delas, escuta-as.

São contadas histórias. Não serão tanto segredos ou confidências já que todas elas se conhecem bem, estão unidas e partilham o confortabilíssimo estatuto social e económico da família Lobelius. São contados cinco episódios que aos poucos, familiarmente, se cruzam e que vão deixando uma marca inesquecível na memória dos amantes de cinema e, em especial, dos do génio de Ingmar Bergman.

Pelos vistos, também terá deixado marca forte na censura do tempo da outra senhora. E, digamos, que até se compreende a razão. O filme foi apenas visto publicamente em Portugal em 1989, 37 anos depois da estreia.

Pois se todas aquelas mulheres se acomodam ao conforto da poltrona Lobelius, também todas rejeitaram submeter-se ao percurso linear que a tal sociedade lhes exigiria.

É um filme de uma sensualidade tão exuberante, de uma beleza gráfica quase expressionista e tão pouco heterodoxa, relativamente ao padrão do “delicodoce” fascismo português, que é com sarcasmo que pensamos na visualização desta espécie de comédia burguesa (mascarada de tragédia) pelo lápis azul dos censores, velhos amantes de «O Pai Tirano» (António Lopes Ribeiro, 1941) ou «O Pátio das Cantigas» (Francisco Ribeiro 1942).

E todas as cinco histórias têm um pano de fundo estético e emocional oposto ao anterior.

Todas elas surgem inicialmente como trágicas consequências de uma desilusão ou mesmo de um acto falhado, porém sempre existe um facto ou uma frase anti-climax que faz virar do avesso o suposto caminho mais dramático.

Mas nem todas… Existe uma história que é ostensivamente ocultada pela protagonista. Por fim, uma penúltima delirante e enclausurada comédia de elevador à Howard Hawks ou Billy Wilder.

Finalmente, os amantes fogem de barco e alguém diz, do exterior e altivo: «Deixa-os convencidos que estão a fazer algo proibido. Deixa-os até que o verão passe.»

Um filme único, imprescindível, deslumbrante.

Filme-catálogo Ingmar Bergman.


jef, setembro 2024

 

«Mulheres Que Esperam» (Kvinnors väntan) de Ingmar Bergman. Com Anita Björk, Maj-Britt Nilsson, Eva Dahlbeck, Gunnar Björnstrand, Birger Malmsten, Karl-Arne Holmsten, Jarl Kulle, Aina Taube, Håkan Westergren, Gerd Andersson, Björn Bjelfvenstam, Märta Arbin, Torsten Lilliecrona, Victor Wifstrand, Wiktor Andersson, Douglas Häge, Lil Yunkers, Lena Brogen, Ingmar Bergman. Argumento: Ingmar Bergman segundo a história de Gun Grut. Produção: Allan Ekelund. Fotografia: Gunnar Fischer. Música: Erik Nordgren. Suécia, 1952, P /B, 107 min.