segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Sobre o livro «O Jogo da Vida» de Patricia Highsmith, Livros do Brasil / colecção Vampiro160. Tradução de Mascarenhas Barreto. Capa de Lima de Freitas.

 










Patricia Highsmith escreve «A Game for the Living» em 1958, passado essencialmente na cidade do México e, depois, em Acapulco. Interessa-lhe muito mais a perspectiva social de Theodore Schiebelhut, rico pintor alemão exilado num país, e a relação deste com o seu amigo, Ramón Otero, um humilde restaurador de móveis, vivendo num modesto apartamento. Tudo os afastaria, contudo a amizade vence assim como a comum paixão, partilhada por ambos, pela pintora Lelia Ballesteros. Depois, sucede a tragédia, as suspeitas, as acusações, as dúvidas, que vão separando o impulsivo e católico Ramón e o cerebral e agnóstico Theodore. Uma vibração de amizade profunda, quase com timbre de homossexualidade, que vai sendo vigiada pelo inspector Sauzas, um super (ou sobre herói) que coloca a bonomia mexicana nos diversos acontecimentos (por vezes inusitados, em jeito de Agatha Christie) a provocar a trama da intriga, envolvendo-nos e obrigando-nos a ler até ao fim e pela noite fora, suspeitando ora de uma ora de outra personagem.

Para Patricia Highsmith, o que lhe interessa é a observação psicológica das personagens que se movimentam à volta do crime. O crime é apenas o móbil secundário.


jef, setembro de 2025

Sobre a peça «O Nariz de Cleópatra, pois claro!» segundo Augusto Abelaira. Teatro Variedades, 2025.



 


















Em 1962, Augusto Abelaira publicou uma peça de teatro política sobre a possibilidade de sermos felizes apesar da infelicidade alheia. Sermos ainda felizes mesmo após todas as guerras e mortes que existiram e existem sobre o mundo.

No século XXIII, ricos diletantes viajam pelo futuro e pelo passado a seu belo prazer apenas por hedonismo. A revolução francesa, a guerra de Troia. Como visitar o passado sem o beliscar, para que a nossa felicidade não seja comprometida? E se os troianos vencessem os gregos? Que seria dos descendentes de Heitor ou de Ulisses? Ou seja, pelo que Pascal diz “Se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais pequeno, toda a face da terra teria mudado”.

Uma nave espacial, um campo de pré-batalha, Ulisses perdido, Andrómaca desesperada. Um vendedor de óculos que trocam simplesmente o errado pelo certo, um coelho saído da cartola, uma noiva com dois maridos, todos a um passo da felicidade, uma professora que coloca os pontos nos is errados, uma comandante que não pugna pela justiça. Um facto é que os felizes até podem vencer, momentaneamente, porém os infelizes são muitos mais e um dia até podem revoltar-se. Afinal, estão todos mortos. Na realidade, estamos todos mortos!


Teatro Variedades, 28 de Setembro de 2025

«O Nariz de Cleópatra, pois claro!» a partir de «O Nariz de Cleópatra» de Augusto Abelaira. Versão cénica e direção de Cristina Carvalhal. Com Alberto Magassela (Ulisses), Ana Sampaio e Maia (Calipso), Carla Maciel (Andrómaca), Heitor Lourenço (Mário, marido de Calipso), João Grosso (vendedor de Felicidade e Coelho), José Neves (Heitor, Paris, General Francês), Manuela Couto (Professora), Nuno Nunes (Pretendente de Calipso), Sílvia Filipe (Comandante). cenário e figurinos: Nuno Carinhas. Luz Manuel Abrantes. Som Sérgio Delgado. Luz: Ana Carocinho. Produção Causas Comuns / Teatro Nacional D. Maria II. Duração: 2h.

sábado, 27 de setembro de 2025

Sobre o concerto «Sexteto de Jazz de Lisboa», Tivoli, 2025.









Há muito que andava sem escutar jazz.

O Sexteto de Jazz de Lisboa oferece-me um concerto comemorativo dos 40 anos da sua formação, com a sala do Tivoli cheia. Existe qualquer coisa de jovial, de cumplicidade, de brincadeira, quase infantil, no modo como este sexteto vai passando de tema para tema. E dentro de cada um deles, como os músicos passam o testemunho como se se tratasse de cerimoniosa dádiva cúmplice, familiar. Movem-se como se estivessem mergulhados num amável espaço aquático. Os temas oferecidos vêm ainda de um primeiro álbum gravado em 1988, «Ao Encontro», quatro anos após a sua formação.

Ao terceiro tema, mergulhava inteiro nesse meio aquoso do jazz. Apetecia-me chamar-lhe “música clássica” mas poderia ser mal interpretado. Tentava encontrar um padrão para os ouvidos da minha memória – blues, bebop, swing, ecm –, a minha memória percorria as prateleiras do jazz, tentava, viciada, encontrar um escaninho para colocar os temas imaginados por Tomás Pimentel ou Mário Laginha. Contudo, havia uma formulação melódica envolvendo sempre um requebro quase de canção de embalar, quase de movimento de salão de baile. Seria isso que, enfim, eu chamaria “jazz clássico”, ou melhor, o “meu” jazz clássico. Mas, afinal, o jazz não se submete a escaninhos ou escantilhões. É ele propriamente dito, ou propriamente tocado. Ponto final.

Uma noite que me trouxe, com alegria e carinho, o jazz de volta ao meu contínuo sistema musical.

Parabéns pelos 40 anos do Sexteto de Jazz de Lisboa. Aguardo com benévola ansiedade o novo disco.

Sexteto de Jazz de Lisboa – Mário Laginha (piano), Mário Barreiros (bateria), Tomás Pimentel (trompete), Edgar Caramelo (saxofone), Ricardo Toscano (saxofone), Francisco Brito (contrabaixo)

Tivoli, 22 de Setembro de 2025


jef, setembro 2025





segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Sobre o livro «Kafka à Beira-Mar» de Haruki Murakami, Casa das Letras / Bis, 2024. Tradução de Maria João Lourenço.



 







Sustentado por uma tradução fina, rigorosa e circunstanciada de Maria João Lourenço, devidamente enquadrada por notas que fazem todo o sentido para quem não contacta com a cultura japonesa, eis um romance que podemos juntar àquele grupo primordial de obras que nos garantem a traumática passagem da adolescência à vida adulta, da puberdade ao corpo obrigado ao comprometimento. Romances iniciáticos.

 Kafka Tamura tem 15 anos e foge sem destino de casa de seu pai. Porém, o destino persegue-o através do próprio passado e as personagens acompanham-no a par e passo como se uma tragédia grega edipiana se cruzasse com a busca proteccionista da ópera romântica de Verdi. Digamos, realismo fantástico freudiano. Sobre tudo duas ou três histórias vão acompanhando o leitor, quer seja a do próprio Kafka ou a da outra sua metade redentora, o velho ex-alfabetizado Satoru Nakata. Por que razão conseguirá este falar com os seus protegidos gatos? Por que um cão o levará junto ao nefasto Johnnie Walker? Como fará ele para provocar chuva de peixes ou de sanguessugas? E, afinal, qual o resultado do relatório de 1946 sobre o incidente ocorrido no final da grande guerra? Afinal, porque corre a alma viva e abstracta do Coronel Sanders, vestido como KFC?

Murakami define bem as personagens, dá-lhes peso estratégico e emocional, fá-las crescer em personalidade, descreve ponto a ponto as suas roupas, os espaços onde circulam, os objectos que tocam, como num livro policial (que afinal também é) ou ao jeito da literatura oitocentista. Sobre elas disserta sobre as próprias investidas como leitor – Nietzsche, Beethoven, Schubert, a banalização do mal. Por fim, coloca as figuras a vogar numa realidade paralela que quantas vezes surgem para resolver o insolúvel, qual Deus ex machina, talvez em busca de uma “pedra de entrada” que, mais tarde, terá de ser necessariamente “fechada”.

Como entender a leitura de “As Mil e Uma Noites” no interior da familiar Biblioteca Memorial Komura. Quem representa a Senhora Saeki? Quem será a jovem Sakura?

Existe em «Kafka à Beira-Mar» um sentimento de enorme liberdade face às normas morais, às convenções literárias, à diegese tradicional, corrompendo-as, Tal como em Edgar Allan Poe. É inevitável não  associarmos este romance a esse conto da ave de asas de azeviche, à perturbação cerimonial daquele extravagante contista. Não sabemos como nos vamos safar dali, que volta ainda temos de dar em perseguição da história…

… O facto, é que, até ao final, não conseguiremos parar de o ler.

 

jef, setembro 2025

 

domingo, 21 de setembro de 2025

Sobre o espectáculo «Deixem o Pimba em Paz». Feira da Luz, 2025.








 






Ainda não tínhamos chegado à Feira da Luz e já se ouvia “24 Rosas” de José Malhoa, atrasados por causa de um magnífico bacalhau com natas, de magnífica companhia! Enfim, lá furámos, empurrámos (com delicadeza) e chegámos quase lá. Uma multidão exultante delirava com a música tão mal vista e tão acarinhada pelo Verão deste País. O Pimba. No meio do aroma fumarento da bifana e da fartura, os músicos tocavam e cantavam todos aqueles refrões que todos conhecemos e muitos torcem o nariz. Porém, ali, o grande Bruno Nogueira e a airosa Manuela Azevedo debatem-se em duelo de percussão secundados por Filipe Melo (teclas), Nuno Rafael (cordas) e Nelson Cascais (contrabaixo). E lá fomos recordando as cantigas de sempre, encantados com a extraordinária direcção musical dos ditos Filipe Melo e Nuno Rafael – “Na Minha Cama Com Ela”, “Não És Homem para Mim”, “Porque Não Tem Talo o Nabo”, “Azar na Praia”, “Comunhão de Bens”, “Niguém Ninguém”, “Garagem da Vizinha”, “Bichos da Fazenda”, “Sozinha”, “Som de Cristal”, “A Cabritinha”, “Telegrama”, “A Padaria” e “Pito Mau”. (Se faltar alguma ou alguma estiver em excesso é por eu ter tirado agora mesmo da net).

E assim, enfumarado pelos cheiros da feira, elevando o Pimba (que deixou de ser pimba para continuar a ser pimba), Bruno Nogueira diz-nos alto e bom som: “Encontramo-nos na Flotilha de Carnide!”

 

Ideia Original e Direcção Bruno Nogueira

Direcção Musical Filipe Melo e Nuno Rafael

Com Bruno Nogueira, Manuela Azevedo, Filipe Melo, Nuno Rafael e Nelson Cascais

Feira da Luz, 5 de Setembro de 2025

 






sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Sobre o filme «Apanhado a Roubar» de Darren Aronofsky, 2025

 























À pala de Quentin Tarantino.

Até que a Disney podia ter produzido o filme onde a personagem principal é um gatinho fofo, que vai resolvendo a cada passo uma intriga bem arquitectada dentro de um bairro pobre de Nova Iorque, nos finais dos anos 90 do século passado. O gato tem a custódia partilhada entre dois vizinhos: um quase imberbe Hank Thompson (Austin Butler) a trabalhar num bar após um terrível acidente de automóvel que roubou a vida ao seu melhor amigo e destruído uma promissora carreira de basebolista, e Russ (Matt Smith) que, em modo punk, parece ter umas quantas visitas indesejáveis ao domicílio. Este tem de se ausentar por causa da doença terminal do pai, que muito ama, deixando o gato ao cuidado de Hank, que todos os dias telefona a sua mãe, que muito ama. No final, tudo acaba em bem e Hank e o gatinho partem para uma estância balnear algures no magnífico planeta caribenho.

Bem, talvez a Disney tivesse que cortar as imagens ultra-violentas dos choques frontais com árvores e postes; talvez também tivesse algo a dizer sobre a profusão de mortes que sistematicamente perseguem o angelical Hank Thompson, tudo com bastantes litros de sangue a escorrer pelo soalho ou mesmo sobre a sutura feita com cola de contacto após os chantageadores lhe terem arrancado os pontos  a sangue frio, isto depois de lhe terem batido ao ponto do herói ficar sem um rim; talvez aquela produtora rejeitasse ainda a quantidade de mauzões "politicamente incorrectos" – russos (eslavos), latinos, judeus ortodoxos e, claro, uma polícia americana corrupta e maléfica.

Afinal, quase tudo morre mas nós ficamos felizes com o happy end desta comédia sangrenta! Um ponto muito a favor deste filme contra a regra hollywoodesca do “quanto mais lixiviado melhor”.

Outro ponto a favor são as interpretações de Regina King, a investigadora policial Roman, e Zoë Kravitz, a resistente namorada de Hank, Yvonne. Quando surgem parece absorverem totalmente as cenas, eclipsando tudo o resto.

Claro que antes da cena final, surgirá de raspão uma cara inesperada, uma cara muito Lynchiana. Viva!

Sabe sempre bem ver um filme à pala de Quentin Tarantino.


jef, setembro 2025

«Apanhado a Roubar» (Caught Stealing) de Darren Aronofsky. Com Austin Butler, Dominique Silver, Shaun O'Hagan, Action Bronson, Jake Bentley Young, Zoë Kravitz, Kitty Lawrence, Matt Smith, George Abud, Nikita Kukushkin, Yuri Kolokolnikov, D'Pharaoh Woon-A-Tai, Will Brill, Oleg Prudius, Regina King, Gregg Bello, Liev Schreiber, Vincent D'Onofrio, Eddie De Harp, Laura Dern, Macy Rodman, Bad Bunny, Henry Wong. Argumento e romance de Charlie Huston. Produção: Darren Aronofsky e Dylan Golden. Fotografia: Matthew Libatique. Música: Rob Simonsen. Guarda-roupa: Amy Westcott. EUA, 2025, Cores, 109 min.