segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Sobre o livro «Kafka à Beira-Mar» de Haruki Murakami, Casa das Letras / Bis, 2024. Tradução de Maria João Lourenço.



 







Sustentado por uma tradução fina, rigorosa e circunstanciada de Maria João Lourenço, devidamente enquadrada por notas que fazem todo o sentido para quem não contacta com a cultura japonesa, eis um romance que podemos juntar àquele grupo primordial de obras que nos garantem a traumática passagem da adolescência à vida adulta, da puberdade ao corpo obrigado ao comprometimento. Romances iniciáticos.

 Kafka Tamura tem 15 anos e foge sem destino de casa de seu pai. Porém, o destino persegue-o através do próprio passado e as personagens acompanham-no a par e passo como se uma tragédia grega edipiana se cruzasse com a busca proteccionista da ópera romântica de Verdi. Digamos, realismo fantástico freudiano. Sobre tudo duas ou três histórias vão acompanhando o leitor, quer seja a do próprio Kafka ou a da outra sua metade redentora, o velho ex-alfabetizado Satoru Nakata. Por que razão conseguirá este falar com os seus protegidos gatos? Por que um cão o levará junto ao nefasto Johnnie Walker? Como fará ele para provocar chuva de peixes ou de sanguessugas? E, afinal, qual o resultado do relatório de 1946 sobre o incidente ocorrido no final da grande guerra? Afinal, porque corre a alma viva e abstracta do Coronel Sanders, vestido como KFC?

Murakami define bem as personagens, dá-lhes peso estratégico e emocional, fá-las crescer em personalidade, descreve ponto a ponto as suas roupas, os espaços onde circulam, os objectos que tocam, como num livro policial (que afinal também é) ou ao jeito da literatura oitocentista. Sobre elas disserta sobre as próprias investidas como leitor – Nietzsche, Beethoven, Schubert, a banalização do mal. Por fim, coloca as figuras a vogar numa realidade paralela que quantas vezes surgem para resolver o insolúvel, qual Deus ex machina, talvez em busca de uma “pedra de entrada” que, mais tarde, terá de ser necessariamente “fechada”.

Como entender a leitura de “As Mil e Uma Noites” no interior da familiar Biblioteca Memorial Komura. Quem representa a Senhora Saeki? Quem será a jovem Sakura?

Existe em «Kafka à Beira-Mar» um sentimento de enorme liberdade face às normas morais, às convenções literárias, à diegese tradicional, corrompendo-as, Tal como em Edgar Allan Poe. É inevitável não  associarmos este romance a esse conto da ave de asas de azeviche, à perturbação cerimonial daquele extravagante contista. Não sabemos como nos vamos safar dali, que volta ainda temos de dar em perseguição da história…

… O facto, é que, até ao final, não conseguiremos parar de o ler.

 

jef, setembro 2025

 

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