Será
que um livro sobrevive a uma tradução heterodoxa, com princípios
sintácticos e vocabulário vindos do outro lado do Atlântico, e uma revisão
apressada, mal-amanhada (mesmo com a advertência inicial de que foi efectuada
“uma mera actualização ortográfica”)? Certamente que um mau livro acabaria
absolutamente obliterado mas «A Consciência de Zeno» de Italo Svevo sobrevive
a todas as tropelias, mesmo com a nossa leitura interrompida nas 434 páginas por
constantes “quebras de rede” ou com o “sistema a ir abaixo” de cinco em cinco
linhas. Por que é um livro soberbo, de um humor tão fino, quase de escárnio
aristocrático, de uma pureza de estilo e consideração social e política que
remonta ao mais entusiasmante catálogo oitocentista pós-romântico, obtém esta sumária consideração editorial? Avancemos.
Dir-se-ia
que Zeno Cosini vive desafogadamente e sem grandes preocupações em Trieste, naquela
cidade na esquina da Península de Ístria do Adriático, esquina também dos
conflitos bélicos e geográficos mais confusos da Europa. Porém, Zeno vive
angustiado com a própria consciência dos actos praticados, actos por praticar ou
simplesmente sugeridos. Vive entre a decisão racional de desejar eternamente
deixar de fumar; de seguir o curso de Química ou o de Direito, ou nenhum deles;
de ter o firme propósito de casar e pertencer à família Malfenti; de
ser um comerciante de sucesso como o seu patrono Olivi; de estar consciente de que
a doença é um ser endógeno ao próprio corpo e que lhe dá a dimensão, por oposição, da felicidade e da alegria que devem ser atingidas a cada dia que passa. Mas devemos sempre optar por uma boa doença bem reconhecida e categórica. Zeno também deve ter uma amante, como
manda a lei da viril compita no porto de Trieste. Também deve praticar a bondade e apoiar comercialmente Guido que lhe roubou o coração de Adelina.
Eis
um romance que faz parte de um conjunto de obras maiores que poderia dar o
título de livros sobre os “homens sem qualidades” (Copyright Robert Musil), aqueles que tentam cair de novo mas de um
modo cada vez mais elegante. Uma estante de obras onde posso incluir «Um, Ninguém e Cem Mil» de Luigi Pirandello, «O Crime de Lorde Arthur
Savile» de Oscar Wilde, «A Noite do Professor Andersen» Dag Solstad ou «Bartleby
de Herman Melville.
Este
livro tem a particularidade de se apresentar de um modo amplo, eclético e
futurista. Não é por acaso que Zeno começa a escrever as memórias por sugestão
do médico que lhe prescreve amiúde consultas de Psicanálise. Zeno detesta o
médico e odeia o método mas continua a escrever as memórias (falsas) para o psicanalista se consolar. Até que a guerra estala. E ele tem de contornar a
colina para ir ter com a família que está de veraneio em Lucinico, precisamente
aquela fronteira perversa entre a Itália e o império Austro-húngaro. Que fazer…
ele que passeava, que nem trazia chapéu e não tomara aindao seu leite
com café?
Entre a Psicanálise e a Consciência, entre o Remorso, a Intuição, o Instinto e o Erro, eis um monumento de prosa inteligente e satírica, a que com um sorriso diria ser um romance “anti-Madame Bovary”!
(Vou ter de investigar a recente edição deste romance da Penguin (2023), com tradução de Ana Cláudia Santos e introdução do grande Gonçalo M. Tavares.)
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