«Não há dissimulação entre nós. Não
se encontram sentimentos ambivalentes, nem emoções explosivas, nem conflitos
por resolver. Sonhos são íntimos, de cada um, não devem ser devassados. Como
nos tempos antigos, têm o seu parentesco na leitura das vísceras ou no voo de
certos pássaros. São agoiros, presságios, só para quem os quiser ler.»
E mais à frente, terminando
«É sem respirar que admiro e desejo
essas estrelas, ordem e ornamento da Terra. Siderada, estou na outra imensidão.
Entre o embaciar e o desembaciar do vidro da janela, peço aos olhos que vejam o
mais que podem e eles, amigos, recolhem a luz de todas as coisas apagadas.»
Estas palavras saem do conto que dá título ao livro. E não
será por acaso. O conto resume a mestria iconoclasta da escritora. Talvez seja
mesmo aquele que fazendo deambular a personagem pelas fracturadas paisagens
berlinenses, procurando o encontro com amigos mas fugindo constantemente das
responsabilidades impostas pelos guias turísticos, termina deste modo: redondo,
interior, talvez complacente.
Todos os outros apresentam-nos os cenários possíveis onde
quem os ocupa pode falhar ou refractar, de modo tão visual como inconclusivo
ou impaciente.
A autora fala de aventuras mais reais que abstractas mas de um
modo que deixa ao leitor a crítica a uma certa discrepância na exegese da
história. As personagens mudam de rumo e de escala, de lugar, enfim, mudam de
vida a seu bel-prazer, contrariando o que deles se esperaria, desafiando o classicismo hermenêutico. Sendo assim, não se espere destes treze contos o normal
percurso da leitura. São textos que exigem do leitor os seus apurados sentidos
crítico e de humor.
Aliás, a crítica ou auto-crítica e o humor ou auto-humor
prevalecem no interior da narração truncada dos actos ou da descrição
dos cenários, como se a escritora utilizasse, também aqui, a técnica da dramaturgia que tão bem conhece. A imagem como ponto de fuga é, em
Luísa Costa Gomes, essencial. Atente-se os pequenos desenhos que, como
complemento do índice, resumem as peripécias de cada uma das histórias.
Aliás é de teatro que trata a conversa no
derradeiro texto. Um diálogo sonolento, sem fim, entre os percursos de um carteiro
diligente com uma carta no bolso e de um Kierkegaard hesitante frente aos encontros
fortuitos com a sua Regine Olsen.
Luísa Costa Gomes ou o modo de reencontrar a realidade pelo
outro lado do espelho narrativo.
jef, outubro 2024
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