quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Sobre o livro «Visitar Amigos e Outros Contos» de Luísa Costa Gomes, Dom Quixote, 2024. Ilustrações de Daniel Lima.



 














«Não há dissimulação entre nós. Não se encontram sentimentos ambivalentes, nem emoções explosivas, nem conflitos por resolver. Sonhos são íntimos, de cada um, não devem ser devassados. Como nos tempos antigos, têm o seu parentesco na leitura das vísceras ou no voo de certos pássaros. São agoiros, presságios, só para quem os quiser ler.»

E mais à frente, terminando

«É sem respirar que admiro e desejo essas estrelas, ordem e ornamento da Terra. Siderada, estou na outra imensidão. Entre o embaciar e o desembaciar do vidro da janela, peço aos olhos que vejam o mais que podem e eles, amigos, recolhem a luz de todas as coisas apagadas.»

Estas palavras saem do conto que dá título ao livro. E não será por acaso. O conto resume a mestria iconoclasta da escritora. Talvez seja mesmo aquele que fazendo deambular a personagem pelas fracturadas paisagens berlinenses, procurando o encontro com amigos mas fugindo constantemente das responsabilidades impostas pelos guias turísticos, termina deste modo: redondo, interior, talvez complacente.

Todos os outros apresentam-nos os cenários possíveis onde quem os ocupa pode falhar ou refractar, de modo tão visual como inconclusivo ou impaciente.

A autora fala de aventuras mais reais que abstractas mas de um modo que deixa ao leitor a crítica a uma certa discrepância na exegese da história. As personagens mudam de rumo e de escala, de lugar, enfim, mudam de vida a seu bel-prazer, contrariando o que deles se esperaria, desafiando o classicismo hermenêutico. Sendo assim, não se espere destes treze contos o normal percurso da leitura. São textos que exigem do leitor os seus apurados sentidos crítico e de humor.

Aliás, a crítica ou auto-crítica e o humor ou auto-humor prevalecem no interior da narração truncada dos actos ou da descrição dos cenários, como se a escritora utilizasse, também aqui, a técnica da dramaturgia que tão bem conhece. A imagem como ponto de fuga é, em Luísa Costa Gomes, essencial. Atente-se os pequenos desenhos que, como complemento do índice, resumem as peripécias de cada uma das histórias.

Aliás é de teatro que trata a conversa no derradeiro texto. Um diálogo sonolento, sem fim, entre os percursos de um carteiro diligente com uma carta no bolso e de um Kierkegaard hesitante frente aos encontros fortuitos com a sua Regine Olsen.

Luísa Costa Gomes ou o modo de reencontrar a realidade pelo outro lado do espelho narrativo.

jef, outubro 2024

                    

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