sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Sobre a peça «A Foz do Mekong» de Fernando Heitor, Boutique da Cultura 2025.



 
























(Um palco quase vazio. Escuro, excepto o lençol. Nada de relevante a assinalar a não ser a penumbra da solidão do corpo que dorme ainda – em jeito de didascália.)

É difícil falar de «A Foz do Mekong» sem revelar o climax da intriga ou, como se usa agora dizer “fazer spoiler”, pois se toda a sugestão inicial parece indiciar um simples acto de sedução entre o jovem estudante de geografia Martim Bernardes (Tomás Andrade) e o seu professor explicador, o eremita comedor de pizzas e frango, aos fins de semana, Afonso (Flávio Gil), tudo é desmontado no acto derradeiro deste breve scherzo trágico. Como nos textos ligados à ópera romântica. A expressão corporal dos actores, digamos coreografia a sublinhar a marcação de cena, sublinha esse dramatismo expressionista.

Estamos no Delta do Mekong, ou quase lá, por ignorância ou distração, esse intricado dédalo de canais, ilhas, vegetação tropical, mangais, barcos, comércio, tudo em agitado silêncio. (Uma Indochina de francofonia proibida que me fez transportar até ao filme «Apocalipse Now / Redux», 1979-2019.)

Contudo, ‘a viagem’ é apenas o início, o simulacro de uma mentira, a mentira de uma aproximação que parece inevitável. Quem é quem para o outro, o que devemos mostrar ou simular para conseguirmos o nosso intento, ou esconder o que somos? Esconder para o outro, ou para nós próprios como máscara de sobrevivência?

Afinal, os papéis estão sempre trocados numa confusa rede de laços e nós que se desejam e rejeitam alternadamente. Um suspense que se adensa progressivamente, levando o espectador a julgar, através de uma série de enganos revelados, que está perante uma trama psicológica, outro dédalo mas de identidades e classes sociais mentidas, transformando-se afinal no reflexo de uma pulsão ou de uma repulsão puramente paternal.

Saí da sala com uma sensação abstacta e, sem saber por que razão, lembrei-me do título de um livro maior de Ray Bradbury «A Morte É Um Acto Solitário».

Será o Amor também ele um acto falhado, por ser, no fim de contas, também um acto solitário, por truncado?

Por favor, vão ao teatro! Nunca houve tanto teatro, tão bom e tão consciente, em Portugal! E para todos os gostos!


jef, 13 de Novembro de 2025

«A Foz do Mekong». Texto e encenação: Fernando Heitor. Com Flávio Gil (Afonso) e Tomás Andrade (Martim Bernardes). Assistência de encenação: Teresa Zenaida. Luz: Paulo Graça. Música: João Paulo Soares. Produção: Camarote Produções. Fotografias: Fernando Santos. 80 minutos.


Boutique da Cultura | Um Teatro em Cada Bairro

14 e 15 de novembro, às 21h00

 

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