Seamus Murphy, realizador que olha a turbulência do mundo através
da fotografia, faz uma coisa muito difícil e fá-lo de modo exemplar. A cantora
e compositora PJ Harvey ao imaginar o álbum «The Hope Six Demolition Project»
(lançado em 2016), acompanha-o pelo Afeganistão, Kosovo, Paquistão, Washington
D.C., na fronteira “refugiada” da Grécia, e vai olhando a sobrevivência, a lama,
o pré-guerra, o pós-guerra, a fome, mas também os sorrisos, as falas, a
devoção, os cânticos, a alegria. Uma terra de ninguém onde a música parece tão inusitada
como imprescindível para que a humanidade ainda pareça “humanidade”.
Por outro
lado, o realizador acompanha a cantora na gravação das várias canções num estúdio
construído em Inglaterra, de propósito. Este lugar, que acolhe músicos como John
Parish, Mick Harvey, Jean-Marc Butty, Linton Kwesi Johnson ou Terry Edwards,
tem amplas janelas onde se juntam espectadores em silêncio que vêem sem ser
vistos. Como num aquário. Nós somos eles. E o mundo destroçado pela fome e pelos
blindados indiferentes ao sofrimento vai seguindo o alinhamento das canções escrito
na parede. PJ Harvey assinala com um v vermelho quando sente que estão prontas.
Ora o que é perfeito no filme (com uma montagem elaboradíssima!) é o cruzamento
entre a reportagem das viagens do “quase-guerra”, a emotividade musical em
situações de gritante crise humanitária, o documentário das gravações de harmonias e arranjos, na alegre comunhão entre os músicos, e o olhar plácido,
estático ou curioso, dos espectadores invisíveis. Este último mote lembrou-me
duas peças cinematográficas fundamentais, para mim: o olhar musical da plateia
enquanto ouve expectante a abertura de «A Flauta Mágica» de Ingmar Bergman (1975)
e a beleza muda das emoções no rosto das cento e catorze actrizes iranianas
(mais a de Juliette Binoche) em «Shirin» de Abbas Kiarostami (2008).
O silêncio de PJ Havey escutando espantada um mundo em
desordem, também é belo. E o propósito de denúncia desse mesmo mundo é fulcral no filme. E é esteticamente irrepreensível. PJ Harvey e Seamus Murphy conseguem-no. Pode dizer-se que ainda há cinema e canções de intervenção.
Mas tomáramos nós que o mundo fosse apenas a realidade no
conforto de um cinema!
jef, janeiro 2020
«PJ Harvey: A Dog Called Money»
(A Dog Called Money) de Seamus Murphy. Com PJ Harvey; John Parish; Mick Harvey;
Jean-Marc Butty; Linton Kwesi Johnson; Terry Edwards; Mike Smith; James
Johnston; Alain Johannes; Kenrick Rowe; Enrico Gabrielli; Alessandro Stefana;
Adam 'Cecil' Bartlett; Ramy Essam. Argumento, Fotografia: Seamus Murphy. Produção: Isabel Davis,
Katie Holly, James Wilson, Seamus Murphy. EUA / Irlanda / Grã-Bretanha, 2019,
Cores, 94 min.
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