Diz o autor numa das últimas páginas não numeradas: «Nós, os
que descendemos de famílias que foram destruídas durante a guerra, sempre
sentimos uma falta, uma falha, de uma forma ou de outra, consciente ou
inconscientemente».
E eu recordo um filme que muito me marcou. «A Imagem Que
Falta» de Rithy Panh (2013), um realizador que reconstrói o passado através de
um universo de pequenas marionetas esculpidas que substituem todas as imagens
que faltam da hecatombe que, entre 1975 e 1979, os Khmers Vermelhos provocaram
sobre a população do Camboja, fazendo desaparecer igualmente todos os objectos
que deveriam garantir-lhe a devida memória.
Muito mais do que um livro denso, tenso, contundentemente irado,
escrito de modo exemplar, sobre a ausência persistentemente presente de um pai
que abandona um filho, ele reflecte, sem peias nem subliminar romantismo, a
tragédia de um povo a que lhe usurparam os genes da recordação.
Literariamente, o holocausto provocou gerações e futuras gerações
de garimpeiros de imagens (e afectos) em falta, e com elas um fenómeno
narrativo que deveria ser, tão só, considerado património da humanidade. A
escrita sobre uma busca exasperada, talvez mesmo demente por eternamente inconclusiva,
por uma verdade perdida, por um conforto emocional sempre adiado. Uma narrativa
com um fim tristíssimo anunciado mas de uma comoção de leitura irreprimível. O
que eu quero dizer é que eu leio este livro com o modo de espanto dilacerado
semelhante ao da leitura de «O Mundo de Ontem» de Stefan Zweig (1942), «Uma História
de Amor e Trevas» de Amos Oz (2003), «A Lebre de Olhos de Âmbar» de Edmund De
Waal (2010) ou «Austerlitz» de W. G. Sebald (2001). Ainda do filme «Debaixo do
Céu» de Nicholas Oulman (2018).
A luz fotográfica de Daniel Blaufuks é do mesmo calibre da
luz da sua escrita. Como que esculpida sob o obturador em pausa. Contudo, a
névoa melancólica e branca coada pela luz martelada da marquise, aguardando a imagem
que foi cortada à tesourada, parece ainda dizer que há alguma esperança, como se
conclui, na página derradeira, pela frase de um dos poemas mais fortes de
Leonard Cohen, «Anthem»: “There is a crack in everything that’s how the light
gets in”. Ou serei eu a querer ver a coisa assim…
…mas talvez não serei só eu.
Ainda recordo, perplexo, algumas das palavras de Daniel Blaufuks
que motivaram a exposição «Léxico» (Outubro, 2016): “No entanto, as fotografias
compõem um léxico de imagens já muito vistas, já muito cliché, que era como se
chamava a fotografia antigamente. As imagens repetem-se porque aparentemente
nos asseguram de que vivemos uma vida que vale a pena ser vivida. Ou, pelo
menos fotografada.”
jef, janeiro 2020
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