quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Sobre o livro «Não Pai» de Daniel Blaufuks. Tinta da China, 2019






















Diz o autor numa das últimas páginas não numeradas: «Nós, os que descendemos de famílias que foram destruídas durante a guerra, sempre sentimos uma falta, uma falha, de uma forma ou de outra, consciente ou inconscientemente».
E eu recordo um filme que muito me marcou. «A Imagem Que Falta» de Rithy Panh (2013), um realizador que reconstrói o passado através de um universo de pequenas marionetas esculpidas que substituem todas as imagens que faltam da hecatombe que, entre 1975 e 1979, os Khmers Vermelhos provocaram sobre a população do Camboja, fazendo desaparecer igualmente todos os objectos que deveriam garantir-lhe a devida memória.

Muito mais do que um livro denso, tenso, contundentemente irado, escrito de modo exemplar, sobre a ausência persistentemente presente de um pai que abandona um filho, ele reflecte, sem peias nem subliminar romantismo, a tragédia de um povo a que lhe usurparam os genes da recordação.

Literariamente, o holocausto provocou gerações e futuras gerações de garimpeiros de imagens (e afectos) em falta, e com elas um fenómeno narrativo que deveria ser, tão só, considerado património da humanidade. A escrita sobre uma busca exasperada, talvez mesmo demente por eternamente inconclusiva, por uma verdade perdida, por um conforto emocional sempre adiado. Uma narrativa com um fim tristíssimo anunciado mas de uma comoção de leitura irreprimível. O que eu quero dizer é que eu leio este livro com o modo de espanto dilacerado semelhante ao da leitura de «O Mundo de Ontem» de Stefan Zweig (1942), «Uma História de Amor e Trevas» de Amos Oz (2003), «A Lebre de Olhos de Âmbar» de Edmund De Waal (2010) ou «Austerlitz» de W. G. Sebald (2001). Ainda do filme «Debaixo do Céu» de Nicholas Oulman (2018).

A luz fotográfica de Daniel Blaufuks é do mesmo calibre da luz da sua escrita. Como que esculpida sob o obturador em pausa. Contudo, a névoa melancólica e branca coada pela luz martelada da marquise, aguardando a imagem que foi cortada à tesourada, parece ainda dizer que há alguma esperança, como se conclui, na página derradeira, pela frase de um dos poemas mais fortes de Leonard Cohen, «Anthem»: “There is a crack in everything that’s how the light gets in”. Ou serei eu a querer ver a coisa assim…

…mas talvez não serei só eu.
Ainda recordo, perplexo, algumas das palavras de Daniel Blaufuks que motivaram a exposição «Léxico» (Outubro, 2016): “No entanto, as fotografias compõem um léxico de imagens já muito vistas, já muito cliché, que era como se chamava a fotografia antigamente. As imagens repetem-se porque aparentemente nos asseguram de que vivemos uma vida que vale a pena ser vivida. Ou, pelo menos fotografada.”

jef, janeiro 2020

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