Não
queria falar em decadência ou nostalgia quando penso nos filmes de Visconti,
apesar de serem substantivos veementes que bem os definiriam. Prefiro pensar
que Visconti tinha (ou apresentava) uma soberba atracção pelo fim. Um
romantismo genético, de coração e de estilo. A ruina, como princípio ou gesta. Cá
em casa, havia uma espécie de veneração pelo realizador. Principalmente por «O
Leopardo» (1963), o da frase repetida a partir do Príncipe de Salina “É preciso
que tudo mude…”, o da cena dos bacios na varanda, esse que faz transpor o neorrealismo
italiano para um campo sublime e oposto ao de si próprio.
Cá
em casa, sempre que passava na televisão era um clássico. Esse e todos os
outros, desde o tal “o carteiro toca sempre duas vezes” «Obsessão» (1943), «A
Terra Treme» (1948), «Belíssima» (1952), «Senso» (1954) ou o terrível «O
Intruso» (1976). Todos com o incrível peso da beleza suprema e o do fim
inevitável e trágico.
Porém,
com «Luís da Baviera» apenas me lembro de o ter visto em episódios e não o
entendi lá muito bem. Era enorme, tinha entrevistas que cortavam a história e,
horror!, acho que adormeci… (Diga-se que ainda não existiam aquelas caixas
mágicas que permitem andar com o tempo televisivo em sentido retrógrado.)
Agora,
agendei uma ida ao cinema através da programação do Nimas e instigado pelo
entusiasmo do músico Nuno Vieira de Almeida. O cinema cheio de público, anacronicamente
afastado por quase quatro horas das redes sociais, nesse enquadramento belíssimo,
lentamente estético, cenicamente operático, profundamente político, sobre a
queda das diversas famílias do império austro-húngaro e adjacentes, sobre a ascensão
e o declínio do último sopro jactante da Europa central pré-Bismarck, da guerra
franco-prussiana e da grande Alemanha de diversos reichs.
Um
dos filmes mais belos de Visconti, talvez o mais político de todos os seus filmes
políticos, onde as tais entrevistas judiciais para atestar a paranoia de Luís
da Baviera o torna de uma actualidade cinematográfica inigualável. Virados
para a câmara, declaram perante a justiça, como hoje em dia é comum no cinema
documental ou de reportagem.
Um
filme feito por ternos e sequenciais episódios: a confissão face à figura
tutelar do clérigo (Gert Fröbe); a relação daquela que é a sua dilecta prima
Sissi da Áustria, a belíssima Romy Schneider, uma espécie de coro grego ou bobo
da corte que vem impor a verdade, a razão e o sorriso sobre o monarca; a
relação vampiresca de Richard Wagner (Trevor Howard); a dramática aproximação à prima Sophie (Sonia
Petrovna) e, por fim, a relação com o actor Joseph Kainz (Folker Bohnet), numa
apologética visão do que viria a acontecer entre Visconti e o próprio actor Helmut
Berger.
Nunca
Visconti foi tão requintadamente sintomático sobre o fim da aristocracia e a
relação familiar no interior da consanguínea monarquia europeia. Nunca terá
sido tão frontal face à sexualidade e à respectiva importância na relação de
poder. Nunca terá sido tão esteta a transportar o classicismo romântico para a
sua arte. Nunca terá olhado de modo tão cruel para o fim da Europa e para a sua
própria finitude como em «Luís da Baviera».
Ou
seja, um filme para rever e para confrontar a Europa de hoje e do dia que lhe seguirá.
jef,
abril 2023
«Luís da Baviera» (Ludwig) de Luchino Visconti. Com Helmut Berger, Romy Schneider, Trevor Howard, Silvana Mangano, Gert Fröbe, Helmut Griem, Izabella Telezynska, Umberto Orsini, John Moulder-Brown, Sonia Petrovna, Folker Bohnet, Heinz Moog, Adriana Asti, Marc Porel, Nora Ricci, Mark Burns, Maurizio Bonuglia, Alexander Allerson, Bert Bloch. Argumento: Luchino Visconti, Enrico Medioli. Produção: Ugo Santalucia, Robert Gordon Edwards, Dieter Geissler. Fotografia: Armando Nannuzzi. Guarda-roupa: Piero Tosi. Itália, França, Alemanha, 2072, Cores, 238 min.
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