Este filme é mesmo muito interessante e fora do comum.
Tem
um fio condutor único que é de ouro (ou assim parece) e sustém uma medalhinha
da Nossa Senhora da Conceição. Essa medalha, entregue por uma freira
missionária (Leonor Silveira) a uma acólita nativa Tchissola (Ulé Baldé), irá,
já perto do final, passar das mãos da prostituta Apolónia (a extraordinária Anabela
Moreira!) para as do soldado Zé (João Arrais). A primeira parte: Angola 1974.
Surge então um curto genérico inicial. Depois, a acção de resistência armada (e de
loucura) muda de sinal, muda de tempo, encontramo-nos entre eucaliptos,
pinheiros-mansos e oliveiras. Um muro alto com arame farpado cerca o pelotão de
jovens soldados resistentes ou insurgentes, oprimindo-os e protegendo-os da
realidade, a recordar «A Vila» de M. Night Shyamalan (2004).
E
o mais curioso é que a fantasia assumida como alegoria poética ou sarcasmo
político e social não desvirtua, antes potencia o carácter de certa forma
demoníaco da acção do filme. É impossível não recordar também «Thriller» de John
Landis / Michael Jackson (1983).
Aliás,
a beleza da fotografia de cores densas e saturadas (Vasco Viana), talvez
renascentistas, sobreposta à definição sintética do som (Nuno Bento e Rafael
Gonçalves Cardoso) transporta o espectador para um mundo irreal muitas vezes
associado ao da música ou da publicidade.
Também
a viagem da jangada pela noite em absolutos segredo e silêncio quase que me sugeriam as clássicas cenas de guerra filmadas em apoteose e desespero por Coppola.
Só que neste caso, a viagem é realizada para resgatar um enorme retábulo com a
imagem de Brigitte Bardot.
O
universo do poder insano da guerra, do medo, da morte e das sombras parece
opor-se diametralmente ao do humor quando o déspota Coronel (Gustavo Sumpta),
como prova de apreço pelo batalhão, oferece um caramelo que, depois é religiosamente
dividido em oito ínfimas partes. Ou quando Apolónia, a prostituta, tenta abrir com
um gancho de cabelo os cadeados salvando-os do passado e, logo depois, é ela que
faz embater o jipe contra do portão, oferecendo-lhes a fuga para o presente.
E
essa evasão, no crepúsculo sobre o Rio Tejo e a Ponte Vasco da Gama faz-se sob
a única, a maravilhosa canção de Fausto «Como um sonho acordado» saído desse
sintomático álbum «Por Este Rio Acima» (1982)!
E
assim o filme de Carlos Conceição ganha o meu duplo aplauso comovido!
jef,
abril 2023
«Nação
Valente» de Carlos Conceição. Com João Arrais, Anabela Moreira, Gustavo Sumpta,
Miguel Amorim, João Cachola, Ivo Arroja, Sílvio Vieira, Diogo Nobre, André
Cabral, Ulé Baldé, Leonor Silveira, Meirinho Mendes, Agostinho Candongo, Madaleno
Cape, Djucu Dabó. Argumento: Carlos Conceição. Produção: Leonor
Noivo, João Matos, Luísa Homem, Pedro Pinho, Susana Nobre, Tiago Hespanha,
Carlos Conceição. Fotografia: Vasco Viana. Som: Nuno Bento, Rafael Gonçalves
Cardoso. Portugal, 2022, Cores, 119 min.
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