quarta-feira, 5 de abril de 2023

Sobre o livro «Maurice» de E.M. Forster. Asa, 2021. Tradução de Elsa T.S. Vieira.

 

 

Afinal de contas, não sei se este será um grande livro. Dei comigo a voltar atrás para reatar ligações narrativas e descritivas, com a sensação de estar perante hiatos inexplicados; também para rever algumas linhas do diálogo; para entender como as personagens principais iam sendo caracterizadas com profundidade e, de tempos a tempos, abandonadas ao seu destino numa Inglaterra que perdera há tão pouco tempo uma das figuras mais importantes da sua estrutura socio-política recente: a rainha Vitória.

(Ou será uma questão de tradução?)

Dito isto e salientando o facto de, apesar de tudo, ser um romance que li com muito agrado, «Maurice» é histórico. O facto torna-se mais evidente quando o autor se revela nas notas finais que foi adicionando posteriormente.

Para além do facto relevante de E.M. Forster (1879-1970) ter dado indicação do texto apenas ser publicado postumamente, ou seja em 1971, quando ele o escreveu em 1913-14 ('dedicado a um novo ano mais feliz'), o autor teve ocasião de assistir à evolução cultural e criminal como a rejeição da homossexualidade evoluiu em Inglaterra referindo-se mesmo ao Relatório Wolfenden que, em 1957, recomendou que “o comportamento homossexual de comum acordo, entre adultos e em privado, não devia mais ser alvo de perseguição criminal”.

Além do mais, o autor assumiu um enlevo criativo a partir do seu contacto com o escritor e intelectual, na altura prestigiado, Edward Carpenter que vivia em Milthorpe com o seu companheiro George Merrill. Um ambiente florestal que influenciou emocional e cenicamente a última parte do livro.

Muito interessante é o modo como o autor “não defende” os seus personagens considerando o suburbano Maurice um homem lento, pouco perspicaz, que aceita, revoltado, as regras impostas pela sociedade familiar que rejeita, e Clive um homem culto mas teórico, insubmisso mas resignado, vindo de uma aristocracia rural em decadência. Quanto ao epílogo com o couteiro Alec Scudder, primeiro chantageador finalmente companheiro numa fuga através de uma floresta mais imaginada que arbórea, confere ao romance o colorido da felicidade e um volte-face salvador.

«– O Clive anda em campanha – continuou Anne. – Vai haver eleições no Outono. Finalmente conseguiu persuadi-los a persuadirem-no a candidatar-se. – Ela tinha o talento inato dos aristocratas para se anteciparem às críticas. – Agora a sério, será maravilhoso para os pobres se ele for eleito. Têm nele um verdadeiro amigo, só gostava que o soubessem.»

E na página seguinte:

«– Também tive de lidar com os pobres – disse Maurice, aceitando um pedaço de bolo –, mas não posso preocupar-me com eles. Temos de lhes dar um impulso para o bem do país em geral, mais nada. Eles não têm os nossos sentimentos. Não sofrem como nós sofreríamos no lugar deles.»

Mais do que a coragem de escrever sobre uma relação homossexual explícita, o que torna o livro ainda mais interessante é o seu lado de humor britânico e crítica feroz a classes dirigentes em contínua desagregação. Esse lado excepcional de uma cultura que vem de Horace Walpole, Charles Dickens ou Oscar Wilde e desagua nos Monty Python.


jef, abril 2023

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