Afinal
de contas, não sei se este será um grande livro. Dei comigo a voltar atrás para
reatar ligações narrativas e descritivas, com a sensação de estar perante
hiatos inexplicados; também para rever algumas linhas do diálogo; para entender
como as personagens principais iam sendo caracterizadas com profundidade e, de
tempos a tempos, abandonadas ao seu destino numa Inglaterra que perdera há tão
pouco tempo uma das figuras mais importantes da sua estrutura socio-política
recente: a rainha Vitória.
(Ou
será uma questão de tradução?)
Dito
isto e salientando o facto de, apesar de tudo, ser um romance que li com muito
agrado, «Maurice» é histórico. O facto torna-se mais evidente quando o autor se
revela nas notas finais que foi adicionando posteriormente.
Para
além do facto relevante de E.M. Forster (1879-1970) ter dado indicação do texto
apenas ser publicado postumamente, ou seja em 1971, quando ele o escreveu em
1913-14 ('dedicado a um novo ano mais feliz'), o autor teve ocasião de assistir à
evolução cultural e criminal como a rejeição da homossexualidade evoluiu em Inglaterra
referindo-se mesmo ao Relatório Wolfenden que, em 1957, recomendou que “o
comportamento homossexual de comum acordo, entre adultos e em privado, não
devia mais ser alvo de perseguição criminal”.
Além
do mais, o autor assumiu um enlevo criativo a partir do seu contacto com o escritor
e intelectual, na altura prestigiado, Edward Carpenter que vivia em Milthorpe
com o seu companheiro George Merrill. Um ambiente florestal que influenciou
emocional e cenicamente a última parte do livro.
Muito
interessante é o modo como o autor “não defende” os seus personagens
considerando o suburbano Maurice um homem lento, pouco perspicaz, que aceita, revoltado, as regras impostas pela sociedade familiar que rejeita, e Clive um homem culto
mas teórico, insubmisso mas resignado, vindo de uma aristocracia rural em
decadência. Quanto ao epílogo com o couteiro Alec Scudder, primeiro
chantageador finalmente companheiro numa fuga através de uma floresta mais
imaginada que arbórea, confere ao romance o colorido da felicidade e um volte-face salvador.
«–
O Clive anda em campanha – continuou Anne. – Vai haver eleições no Outono. Finalmente
conseguiu persuadi-los a persuadirem-no a candidatar-se. – Ela tinha o talento
inato dos aristocratas para se anteciparem às críticas. – Agora a sério, será
maravilhoso para os pobres se ele for eleito. Têm nele um verdadeiro amigo, só
gostava que o soubessem.»
E
na página seguinte:
«–
Também tive de lidar com os pobres – disse Maurice, aceitando um pedaço de bolo
–, mas não posso preocupar-me com eles. Temos de lhes dar um impulso para o bem
do país em geral, mais nada. Eles não têm os nossos sentimentos. Não sofrem
como nós sofreríamos no lugar deles.»
Mais
do que a coragem de escrever sobre uma relação homossexual explícita, o que
torna o livro ainda mais interessante é o seu lado de humor britânico e crítica
feroz a classes dirigentes em contínua desagregação. Esse lado excepcional de
uma cultura que vem de Horace Walpole, Charles Dickens ou Oscar Wilde e desagua
nos Monty Python.
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