segunda-feira, 3 de junho de 2024

Sobre o livro «Neve» de John Banville, Minotauro 2023. Tradução de Sónia Amaro. Revisão de Joana Baudouin.

 


 








A história desenrola-se numa Irlanda que ainda se agride com as feridas da religião e da independência. O padre católico Tom Lawless é assassinado em Ballyglass na mansão de uma família protestante pouco tradicional, quase em descrédito financeiro, de costumes e de sanidade emocional. Isto é revelado nas primeiras cinco páginas deste belo romance policial. Dividido em quatro partes, estende-se pelas décadas de 1947, 1957 e 1967. Não exactamente por esta ordem.

O coronel Osborne faz as honras da casa e o taciturno detective Strafford (com r) deambula pela neve de um inverno rigoroso em busca de pistas. É secundado pelo sargento Ambrose Jenkins que insiste em manter uma poupa no cabelo, emproada com Brylcreem, tentando esconder o formato pouco habitual do seu crânio.

No fundo, Strafford é o croupier que vai descrevendo sem julgar as diversas personagens, narrando-se também a si mesmo através da arreigada solidão, esta que encontra na mansão de Ballyglass a réplica do cenário do seu próprio passado.

Um bom romance policial distingue-se pela teimosia da observação morfológica do narrador, quase humor, quase amor, deixando-nos ir através da cor dos casacos e do cheiro de salas e esconsos. Pelos tiques e características com que carrega, risível, cenas e personagens. Um vício diria oitocentista e intemporal. E se aqui relembro Georges Simenon ou Raymond Chandler é apenas para dizer que John Banville faz parte desse oratório de fazedores de santos detectives, obstinados e a um passo da depressão solitária.

Pena é que a tradução (ou revisão) nos faça tropeçar em gatos e gralhas. Uma zoologia etimológica que sistematicamente, ao longo do texto, confunde as coisas distintas que são golas e colarinhos! Mesmo assim não chega para estragar o prazer da leitura deste magnífico romance.

 

jef, junho 2024

Sem comentários:

Enviar um comentário