O
que nos fará entreter (e rir) numa peça de teatro escrita há mais de 400 anos e
que surge na adaptação musical de Ricardo Neves-Neves? Será sempre essa comédia
de enganos (de género e de classes sociais) vinda do absurdo e de uma época em
que as mulheres ainda não pisavam o palco, esse antro demoníaco de perversidade
social e sexual. Enfim, certamente também um motivo de diversão desde os tempos
clássicos e helénicos. Esse eterno motivo que, dizem, mais tarde, ter vindo
ajudar a provocar revoluções à francesa, de Beaumarchais e Marivaux, ou até aos
nossos dias e às novelas televisivas da actualidade.
De
facto, durante o naufrágio provocado por uma tempestade, dois irmãos gémeos,
Sebastião e Violeta, são separados. Violeta pensando que o irmão morrera na
tragédia, chegando a Ilíria, mascara-se de homem e emprega-se como pajem do
duque Orsino levando cartas deste à sua apaixonada Olívia que, claro, não o
ama. O pajem, agora Cesário, entra no campo minado do amor pois encanta-se logo
por Orsino e Olívia encanta-se por Cesário, afinal Violeta. Como resolver a
questão? Devolvendo, regressado das águas, Sebastião, o irmão gémeo e
redistribuindo o jogo novamente. Para Shakespeare esta intriga não chega e vai
semeando a intriga de episódios e
personagens, cópias burlescas do que seria o ambiente social da corte
isabelina.
Sobre o burlesco do dramaturgo, Ricardo Neves-Neves sobrepõe sem desvirtuar ou tornando virtual a antiga comédia sob os holofotes de Gloria Gaynor, Spice Girls ou Nino Rota. E se todos os personagens são interpretados por homens, a orquestra e coro são compostos apenas por mulheres. O curioso é que Ricardo Neves-Neves consegue expor a extra-sexualidade dos actores e das músicas numa contenção fundamental que impede (e seria muito fácil) o espectáculo de cair numa “chacota de género”, facto que, hoje em dia, digamos, começa a ser uma permanente e enfadonha de quase ridícula pecha. Impedindo o riso alarve, a encenação ultra-burlesca é contida por pormenores tão discretos quanto hilariantes. Recorde-se, o pintainho de Olívia e o rouge que esta coloca na cara, ou a caixa de surpresas que Malvolio transporta dentro da cabeleira. Sem esquecer que o cenário, afinal, se compõe somente e do principio ao fim por duas nuvens toscas de algodão em rama e três ou quatro simples telas-pórticos. A imaginação do espectador ao poder!
William
Shakespeare nas mãos de Ricardo Neves-Neves (e dos seus brilhantes actores e
músicas) não será para todos (apesar de sempre o ser!)
jef,
junho 2024
«Noite
de Reis». Texto: William Shakespeare. Versão dramatúrgica e encenação: Ricardo
Neves-Neves. Cenografia: Ana Paula Rocha. Figurinos: Rafaela Mapril. Direcção
Musical: Renato Júnior. Coro: João Paulo Santos. Figurinos: Marisa Fernandes. Caracterização
e perucas: Dennis Correia e marco Santos. Desenho de luz. Cristina Piedade. Com
António Ignês, Cristóvão Campos, Dennis Correia, Filipe Vargas, João Tempera,
Joaquim Nicolau, José Leite, Manuel Marques, Marco Delgado, Rafael Gomes, Ruben
Madureira, Rui Melo e Tomás Alves. Direcção musical: Rita Nunes. Orquestra e
coro: Helena Silva, Carolina Duarte, Teresa Soares Sara Oliveira, Teresa
Martins, Daniela Pinheiro, Solange Silva, Juliana Campos, Rita Nunes, Nádia
Anjos, Eliana Lima, Inês Laginha, Mariana Godinho, Teresa Braga, Beatriz
Ventura, Filipa Portela, Isabel Cruz Fernandes, Rita Carolina Silva e Sara
Brites. Teatro da Trindade. 120 minutos.
Sem comentários:
Enviar um comentário