sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Sobre o filme «O Testamento de Orfeu» de Jean Cocteau, 1960

















Sobre este filme pode escrever-se tudo. Ou talvez nada. 
Alain Resnais diz a Jean Cocteau: «Que lição de liberdade deste a todos nós!». 
É exactamente essa liberdade que recebemos neste filme-poema-gráfico.

Um poeta-Cocteau, espécie de morto-vivo, trajado como antigamente, calção, jaqueta, cabeleira empoada, encontra-se com alguns seres mais ou menos voláteis que morrem e renascem e voltam a morrer, com recurso a balas mágicas que fazem o ciclo completar-se e entregam a morte a quem pretende levar o seu testamento a juízes que fumam e interrogam objectos e palavras. As flores renascem, os cavalos e os ciganos seguem caminho enquanto Édipo e a sua mãe Jocasta, Orfeu e Eurídice, o anjo Heurtebise e Cegeste, Picasso e Aznavour, recebem o poema como testemunho.

Eu era miúdo e estes filmes passavam nas sessões de cinema na televisão. Eu não percebia absolutamente nada, a minha mãe explicava-me que Jean Cocteau era assim, meio maluco, poeta e artista, e fazia filmes esquisitos mas muito bonitos. Eu via e encantava-me com as figuras de teatro, os efeitos especiais, as cenas a andarem para trás, uma espécie de desenhos animados encantados que não era preciso compreender apenas gostar. (Como a verdadeira poesia.) Na minha memória, entre o susto, o deslumbramento e o riso infantil, ficaram para sempre registados os olhos cegos pintados sobre os olhos tapados do poeta-Cocteau, os mortos-vivos, as personagens que desapareciam entre fumos, Picasso a espreitar.

Ficou-me para sempre essa vocação para o poeta conceder a total liberdade de nos encantarmos com o filme incompreensível, com o belo inexplicado, com a sedução do ser plástico que é a palavra, absoluta abstracção da Arte.

jef, agosto 2018

«O Testamento de Orfeu» (Le testament d’Orphée) de Jean Cocteau. Com Jean Cocteau, Françoise Arnoul, Claudine Auger, Charles Aznavour, Brigitte Bardot, Lucia Bosé, Yul Brynner, Maria Casares, Françoise Michel Comte, Picasso. Argumento: Jean Cocteau. Música: Georges Auric, François Baschet, Jacques Lasry, Jacques Météhen, Martial Solal, Christoph Willibald Gluck. Fotografia: Roland Pontoizeau. Produção: Jean Thuillier, François Truffaut. França, 1960, P/B (quase), 77 min. Nimas (25-08-2018)****

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