Sobre este filme pode escrever-se tudo. Ou talvez nada.
Alain
Resnais diz a Jean Cocteau: «Que lição de liberdade deste a todos nós!».
É exactamente essa
liberdade que recebemos neste filme-poema-gráfico.
Um poeta-Cocteau, espécie de morto-vivo, trajado como
antigamente, calção, jaqueta, cabeleira empoada, encontra-se com alguns seres
mais ou menos voláteis que morrem e renascem e voltam a morrer, com recurso a balas mágicas que fazem o ciclo completar-se e entregam a morte a quem
pretende levar o seu testamento a juízes que fumam e interrogam objectos e palavras. As flores renascem, os cavalos e os ciganos seguem caminho enquanto
Édipo e a sua mãe Jocasta, Orfeu e Eurídice, o anjo Heurtebise e Cegeste,
Picasso e Aznavour, recebem o poema como testemunho.
Eu era miúdo e estes filmes passavam nas sessões de cinema na
televisão. Eu não percebia absolutamente nada, a minha mãe explicava-me que
Jean Cocteau era assim, meio maluco, poeta e artista, e fazia filmes esquisitos mas muito bonitos. Eu via
e encantava-me com as figuras de teatro, os efeitos especiais, as cenas a andarem para trás, uma espécie de
desenhos animados encantados que não era preciso compreender apenas gostar. (Como a verdadeira poesia.) Na minha memória, entre o susto, o deslumbramento e o
riso infantil, ficaram para sempre registados os olhos cegos pintados sobre os
olhos tapados do poeta-Cocteau, os mortos-vivos, as personagens que
desapareciam entre fumos, Picasso a espreitar.
Ficou-me para sempre essa vocação para o poeta conceder a
total liberdade de nos encantarmos com o filme incompreensível, com o belo
inexplicado, com a sedução do ser plástico que é a palavra, absoluta
abstracção da Arte.
jef, agosto 2018
«O Testamento de Orfeu» (Le testament d’Orphée) de Jean
Cocteau. Com Jean Cocteau, Françoise Arnoul, Claudine Auger, Charles Aznavour,
Brigitte Bardot, Lucia Bosé, Yul Brynner, Maria Casares, Françoise Michel
Comte, Picasso. Argumento: Jean Cocteau. Música: Georges Auric,
François Baschet, Jacques Lasry, Jacques Météhen, Martial Solal, Christoph
Willibald Gluck. Fotografia:
Roland Pontoizeau. Produção: Jean Thuillier, François Truffaut. França, 1960, P/B
(quase), 77 min. Nimas (25-08-2018)****
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