Saído do romance de John Ballard, a densa fotografia de Peter
Suschitzky e os acordes obsessivos de Howard Shore fazem de «Crash» um dos
filmes mais violentamente psicanalíticos de David Cronenberg. A pulsão sexual e
a pulsão dramática para a autodestruição estão aqui colocadas de modo tão explícito
que o filme surge como uma loa ao interior descarnado da espécie humana, uma
ode irrepreensivelmente estética ao fundamento voyeurista da pornografia. Aqui
todos querem ver tudo até ao instante final, a começar pelos espectadores. E o
instante final (orgástico e feliz) é a morte. Todos a desejam (e se desejam)
como desejam a força potencial e cinética dos ferros amalgamados quando o
choque frontal se executa. Uma alegoria perfeita à sexualidade
fatal, ao desejo de penetração ansiada mas adiada pelo rigor e perfeição
encenados. Cronenberg obriga-nos a intensificar o olhar sobre as histórias que querem
ser ouvidas; sobre o brilho dos tecidos vestido pelas personagens; sobre o fulgor
das carrocerias dos automóveis escurecido pelas trevas que o absorvem e digerem;
sobre a pele tatuada ainda em sangue; sobre o desejo ilícito que se processa à
revelia da polícia e, por isso mesmo, mais ansiado ainda.
Entre a sensualidade metálica, quase pornográfica,
todos se movem no limiar da morte sob um manto de interajuda, intrínseco companheirismo,
numa brutal ternura. É esse movimento táctil e afectivo que atrai os corpos e,
depois, os liquida, que transforma o filme numa das mais cronenberguianas
parábolas sobre os fundamentos da existência humana.
jef, julho 2020
«Crash» de David Cronenberg. Com James Spader, Holly Hunter,
Elias Koteas, Deborah Kara Unger, Rosanna Arquette, Peter MacNeill, Yolande
Julian, Cheryl Swarts, Judah Katz, Nicky Guadagni, Ronn Sarosiak, Boyd Banks,
Markus Parilo, Alice Poon, John Stoneham Jr.. Argumento David Cronenberg
segundo romance de John Ballard. Música: Howard Shore. Fotografia: Peter
Suschitzky. EUA, 1996, Cores, 100 min.
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