sexta-feira, 31 de julho de 2020

Sobre o livro «O Jogador» de Fiódor Dostoiévski. Livros RTP “Biblioteca Básica Verbo” n.º3, Editorial Verbo, 1970 (1866).

 

















A questão deste grande romance é que nos atira directamente para dentro da angústia diletante e do incompreendido tédio de Alexei Ivanovitch, a figura central da acção, sem pedir meças à narrativa nem amaciar a entrada do leitor nesse mundo hostil de fidalgos falidos à beira de um ataque de nervos caso não chegue uma herança ou a roleta não lhe seja generosa.

Tudo aparece como numa novela policial muito rápida onde as personagens se movimentam entre segredos e intrigas, amores escondidos ou perdidos, arquitectados e negados, aguardando desfechos iminentes. Talvez melhor, como num banquete cerimonioso onde os convivas escondem as garras em luvas macias e conversam sem trocar palavra alegando sorrisos sórdidos, silêncios elucidativos e esperanças vãs. Talvez melhor, como numa peça de teatro onde os diálogos são tão comprometedores como esclarecedores, onde os vários “géneros” europeus são dissecados até ao osso, onde a paixão e o fingimento são moedas de um cunho apenas e o vício é o único antídoto contra a destruição da personalidade.

Até que chega àquelas termas alemãs de Ruletemburgo, inesperadamente e cheia de vigor, numa cadeira de rodas, a avó Antonida Vassilievna. Ela não tem cerimónias, maneiras, vem desalvorada e cheia de dinheiro. Quer jogar e simpatiza com o perceptor Alexei Ivanovitch que a conduz às mesas de jogo. Todos ficam em pânico, pois as heranças e as roletas não casam bem. Estamos a meio do livro e as coisas vão mudar. Para o perceptor, para a avó e para toda essa falsa família do falso general. Polina mantém escravo de amor Alexei Ivanovitch que, a uma palavra sua, se atiraria do alto do Schlangenberg ou desafiaria o estatuto aristocrático do barão Wurmerhelm.

Por ela, tudo ganharia e tudo perderia num determinado jogo onde a imensa solidão e os mais puros abandono e desprezo por si próprio ficam aprisionados nas sequências imprevisíveis de números, de rouge e de noir.

Na realidade, um gigantesco romance sobre a fractura e dissolução do coração humano.


jef, julho 2020

 


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