A questão deste grande romance é que nos atira directamente
para dentro da angústia diletante e do incompreendido tédio de Alexei Ivanovitch, a figura
central da acção, sem pedir meças à narrativa nem amaciar a entrada do leitor
nesse mundo hostil de fidalgos falidos à beira de um ataque de nervos caso não
chegue uma herança ou a roleta não lhe seja generosa.
Tudo aparece como numa novela policial muito rápida onde as
personagens se movimentam entre segredos e intrigas, amores escondidos ou
perdidos, arquitectados e negados, aguardando desfechos iminentes. Talvez
melhor, como num banquete cerimonioso onde os convivas escondem as garras em
luvas macias e conversam sem trocar palavra alegando sorrisos sórdidos, silêncios elucidativos
e esperanças vãs. Talvez melhor, como numa peça de teatro onde os diálogos são
tão comprometedores como esclarecedores, onde os vários “géneros” europeus são
dissecados até ao osso, onde a paixão e o fingimento são moedas de um cunho
apenas e o vício é o único antídoto contra a destruição da personalidade.
Até que chega àquelas termas alemãs de Ruletemburgo,
inesperadamente e cheia de vigor, numa cadeira de rodas, a avó Antonida
Vassilievna. Ela não tem cerimónias, maneiras, vem desalvorada e cheia de
dinheiro. Quer jogar e simpatiza com o perceptor Alexei Ivanovitch que a conduz
às mesas de jogo. Todos ficam em pânico, pois as heranças e as roletas não
casam bem. Estamos a meio do livro e as coisas vão mudar. Para o perceptor,
para a avó e para toda essa falsa família do falso general. Polina mantém
escravo de amor Alexei Ivanovitch que, a uma palavra sua, se atiraria do alto
do Schlangenberg ou desafiaria o estatuto aristocrático do barão Wurmerhelm.
Por ela, tudo ganharia e tudo perderia num determinado jogo onde a
imensa solidão e os mais puros abandono e desprezo por si próprio ficam
aprisionados nas sequências imprevisíveis de números, de rouge e de noir.
Na realidade, um gigantesco romance sobre a fractura e
dissolução do coração humano.
jef, julho 2020
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