Marco
Martins («Alice», 2005 ou «São Jorge», 2016) coloca a sociedade deprimida na degradada
colónia balnear de Great Yarmouth, no Leste de Inglaterra. É o cenário onde se
movem as câmaras de filmar. No centro desta, a exploração dos emigrantes
portugueses que eram exportados no final de 2019, o Brexit vinha aí, como carne
de peru para serem explorados nos matadouros-fábrica de processamento de carne daquelas
aves. O núcleo é ocupado por Tânia, a controleira e exploradora-mor daquelas
hordas de miseráveis que mal sobrevivem entre os prédios infectos onde dormem e
o sangue e fezes das aves que chegam para serem mortas e depenadas em condições
extremas. A alma de Tânia é a actriz Beatriz Batarda. A verdadeira alma da
actriz como que é sugada numa interpretação para a história do teatro. Acredito
que tenha sido inesquecível para os actores com quem contracenou (tal como o é
para os espectadores!) essa arrebatadora entrega corporal e do ânimo de Beatriz
Batarda que, em crescendo de exaustão, é finalmente dilacerada e exterminada pela
paixão por Carlos (Nuno Lopes), um dos emigrantes que chega questionando o
paradeiro do seu irmão Cardoso (Hugo Bentes), que anda a ser perseguido pelos
usurários. Paixão ainda manchada mais a negro pela chantagem da esposa grávida
de Cardoso.
Tudo
envolto na luz lúgubre dos corredores e dos quartos onde se amontoam deploráveis
os emigrantes, na solidão das sombras, das paredes e tectos deteriorados, em
imagens de abstracção plástica lembrando os painéis criados pelo pintor catalão
Tàpies, na composição estética com os galgos de Raúl (Romeu Runa) a recordar o
impacto cénico de um dos grandes filmes de Mike Leigh, «Nu», 1993.
Contudo,
o filme, em certa medida, parece depois soçobrar, perdendo energia dramática,
perante a genialidade de Beatriz Batarda (e tanto se fala de Kate Blanchet no
hollywoodesco «Tár»!); perante a força bruta das interpretações de Nuno Lopes,
Rita Cabaço ou Romeu Runa; face a um certo deslumbramento estilizado da
fotografia de João Ribeiro; do sofrimento agonizante das pobres aves; da
poética alegórica das aves que migram sobre um sapal que vai perdendo a densidade
cosmopolita e ornitológica.
Um
excesso estético que, todavia, não retira a necessidade de se ir ao cinema ver um
dos importantes filmes da forte e crescente cinematografia portuguesa.
jef,
março 2023
«Great
Yarmouth: Provisional Figures» de Marco Martins. Com Beatriz Batarda, Nuno
Lopes, Kris Hitchen, Romeu Runa, Rita Cabaço, Hugo Bentes, Robert Elliot, Michael
Rawson, Joseph Ross, Eve Woods, Félix Magar Phibbs, Craig Smith, Kerry Gedge, Anna
Frostic. Argumento: Marco Martins e Ricardo Adolfo. Produção: Kamilla Hodol,
Filipa
Reis. Fotografia: João Ribeiro. Música: Jim Williams. Guarda-roupa: Isabel
Carmona. Portugal / França, 2022, Cores, 113 min.
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