domingo, 7 de janeiro de 2024

Sobre o livro «Anna Karénina» de Lev Tolstoi. Relógio D’Água, 2012 (1877). Tradução de António Pescada.



 







«Anna Karénina» é um romance monumental escrito em miniatura. Uma enorme novela minuciosa construída a partir de três ou quatro histórias principais que se cruzam e chocam nas quais o pormenor mais ínfimo e requintado de uma saia, de um véu ou sobrecasaca é tão importante como os comentários sociais e políticos que vão evoluindo ao sabor do rodar das caleches ou da caça às galinholas nas margens pantanosas do lago. É a história universal do Amor mas, talvez acima de tudo, a compreensão das mudanças radicais que um país continental como a Rússia viria a sofrer ao longo das décadas e dos séculos seguintes.

Nos bailes e jantares, todos os pormenores descritivos são fundamentais e ninguém é figurante. Todas as reacções têm consequências, todos os olhares, as suas causas. Como nas cenas de baile dos filmes de Luchino Visconti. O guarda-roupa nas corridas de cavalo é essencial, como nos filmes de George Cukor. Os uniformes definem a hierarquia, o tédio e a vacuidade das relações administrativas e nas eleições regionais.

Um romance que, na sua primeira linha, marca para sempre o percurso melancólico da humanidade:

«Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.».

Nenhuma novela de mais de 750 páginas começa de modo tão rápido como se tivéssemos entrado no cinema já com o filme a meio. Logo a figura de Stepan Arkáditch Oblonski, hedonista, leviano, bon vivant, gastador, marca o ritmo. Talvez a figura mais superficial e quase tola, também divertida e sociável, amigo de longa data, do tempo miliar, de Konstantin Dmítri Lévin, precisamente o seu oposto. Talvez a personagem mais acarinhada pelo escritor, aquela que lhe veste a pele, que vai às colmeias com ele ou recita de cor as próprias teorias sobre a religião, sobre a agricultura, sobre o mau-humor e o bom amor pela humanidade. Taciturno, tão envergonhado quanto apaixonado, tão literato como distraído e juvenil, sempre a duvidar da utilidade de rezar a um certo deus. Deverá haver poucos romances que acabarão de modo tão poético, introspectivo, iconoclasta, consciente, fundamentado na virtude do melhor querer. Termina com a própria lei estipulada por Lévin para o resto da sua vida.

Uma outra personagem masculina, central para o desenrolar da intriga e que representa ainda o oposto de Oblonski e Lévin, obrigou-me a sublinhar o seu lema:

«Cada minuto da sua vida estava ocupado e programado. E para conseguir fazer tudo o que devia fazer todos os dias, ele mantinha a mais rigorosa pontualidade. “Sem pressas e sem descanso”, era a sua divisa».

Alesksei Aleksándrovitch, de seu nome, mais velho, funcionário de ministério, implacável nas normas administrativas e familiares e no cumprimento religioso, tem umas mãos e umas orelhas muito particulares. Ainda outra personagem no oposto das anteriores. Pelo contrário, uma das mais infantis e solitárias, fez-me apontar outra passagem. Serioja estuda obrigado à frente do professor, velho e feio:

«Compreendia que o professor não pensava no que dizia, sentia-o pelo tom com que isso era dito. “Mas porque é que eles combinaram dizer tudo da mesma maneira, tudo o que é mais maçador e desnecessário? Porque é que ele me afasta de si, porque é que não gosta de mim?”, perguntava a si mesmo com tristeza e não conseguia encontrar resposta.»

O mais inacreditável no romance é que o ritmo não é constante e navega ao sabor diletante do instinto do escritor, entre descrições de refeições e compotas ou teorias para renovar o contrato agrícola num país onde a serventia nos campos acabara. E o nosso tempo segue a seu lado, acelerando e travando em tom volúvel, no modo literário e não real, que deixa o leitor preso à página que está a virar.

Nas últimas páginas, tive de abrandar para melhor saborear a leitura e adiar esse sempre triste sentimento de orfandade que os enormes livros entusiásticos deixam no leitor quando ameaçam chegar ao fim.

Colossal monumento ao Amor, à Vida e à Liberdade.


jef, janeiro 2024

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