quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Sobre o livro «Rusga» de Rui Môço, Cordel d’Prata 2020












São 36 textos que, em certo sentido, poderíamos considerar como poemas se não fossem escritos em prosa e neles não espreitasse a veia narrativa de cronista de Rui Môço.

Seriam poemas sérios se o autor conseguisse reprimir o irresistível laivo de humor com que enaltece ou fustiga grande parte dos protagonistas nos seus contos.

Sim, porque são pequenos contos que, em simultâneo, contêm o lado microcósmico e humanista do quotidiano mas também o delirante lado clínico da observação diária, quase fantasioso, quase romanesco. Lembrei-me de Robert Walser ou Nikolai Gógol.

O Amor e a Morte. O Cosmos e a Botânica. O Mar, a Solidão e o Abandono. Também o Corpo e a Palavra.

Talvez melhor, tudo sobre o corpo da palavra. Sem o vício do adjectivo nem o inútil alongar descritivo da acção. Simples e eficaz. Por vezes matreiro, outras, doce.

E se já ninguém deveria escrever sobre o amor, a páginas tantas, Rui Môço ameaça-o escrevendo o paraíso e o inferno que se abatem, intermitentes, sobre o vôo das andorinhas que tentam encontrar os frutos ávidos na superfície de um corpo suculento.

Ou, já lá para o fim, o assomo de uma natureza morta com uma laranja esmagada que tenta, apesar do sumo se perder pela rua, manter a dignidade da sua forma.

«Rusga» será, deste modo, a metáfora para o toque-e-foge de um desejo ou de uma desilusão.

 

jef, janeiro 2024

Sem comentários:

Enviar um comentário