segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Sobre o livro «Um Lugar para Mungo» de Douglas Stuart, Alfaguara, 2023. Tradução de Nuno Quintas.



 







Como deve ser difícil traduzir um livro como «Um Lugar para Mungo». E esse modo verbal vindo directo de uma sociedade à beira da ruptura por todos os cantos. Novamente («Shuggie Bain», Douglas Stuart 2021), os arrabaldes de Glasgow, os bairros sociais, o desemprego, nem carvão, nem aço, nem estaleiros, apenas uma política inferior e musculada. Margaret Thatcher, 1980. O álcool, a droga, a pobreza, o desamparo. E a testosterona. A agressividade atroz entre as tribos protestantes e católicas como diversão primordial de fim-de-semana. O sangue e os ossos partidos. A subjugação à supremacia masculina como vínculo mais distinto de uma sociedade. Um bairro, Um prédio, umas escadas com um vitral luminoso em cada patamar, em cada lar um esconderijo mal dissimulado. Ali vive Mungo, a irmã Jodie, a sua protecção talvez também o irmão Hamish, a sua ameaça. A mãe Mo-Maw, sigla usada nos Alcoólicos Anónimos, já não mora ali. Do outro lado, pelas janelas das traseiras, Mungo diverte-se em trejeitos e momices com James. Mungo tem 15 anos, James um pouco mais velho, é católico e tem um pombal num descampado por perto. Uma amizade quase infantil que se vai aproximando irremediavelmente da paixão. Porém e por todos os motivos, ela é proibida.

O romance é escrito de tal modo que a leitura se torna compulsiva apesar de (ou talvez por isso mesmo) sabermos da tragédia iminente. Em diálogo constante, com descrições rápidas e microscópicas, por vezes infligindo golpes radicais narrativos. É-nos apresentado em dois tempos diferentes: “Maio seguinte” e “Janeiro passado” que se aproximam numa vertigem de ansiedade, miséria e abandono, até assistirmos à sua conclusão, em climax apoteótico de peça de teatro, em que todos os agentes e toda acção se unem, à mesma hora, no terreiro frente ao hospital, junto a uma rulote de “bifanas” escocesas.

Douglas Stuart tem um dom especial para fazer fluir o melodrama através do modo muito especial em emprestar sensibilidade e ternura às personagens, mas também raiva e revolta por uma injustiça tão real e dilacerante. (O realizador de cinema Douglas Sirk, certamente ficaria curioso pelos enredos do seu homónimo!)

Será Douglas Stuart um escritor neo-neo-realista?

 

jef, janeiro 2024

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