sábado, 6 de abril de 2024

Sobre o filme «O Acossado» de Jean-Luc Godard, 1960


























Reconheço que «O Acossado» é daqueles filmes infinitos que, de todas as vezes que o vemos, apresenta novas qualidades face ao dia que estamos a viver, diferentes pormenores que tocam a nossa atenção naquele momento, sabendo nós genuinamente que, de uma visualização para outra, já nos fomos esquecendo de outros tantos pormenores e qualidades.

Desta vez, fico com a grata sensação de que o filme é uma comédia rápida, velocíssima, sobre a inocência juvenil, quase inconsciência infantil, ou o início do erotismo que é obrigado a terminar sob os abstractos ferros da austeridade social, da inflexível autoridade colectiva. Não será por acaso que um dos planos mais tangencialmente demorados é sobre o paternal retrato do actor mais duro e amável do cinema americano – Humphrey Bogart, e a quem é roubado o gesto repetido, profundamente cénico, cinéfilo e erótico.

Olhando, neste dia, para esta provocadora estratégia sem estratégia "americana" não posso deixar de recordar, repentinamente, de «Bonnie and Clyde» (Arthur Penn, 1967), de «Noivos Sangrentos» (Terrence Malick, 1973) ou de «Lua de Papel» (Peter Bogdanovich, 1973). Mas nada destes filmes tem a ver com a estética modernista de «À Bout de Souffle», com a beleza de cada plano, entrecortado filosoficamente com o diálogo mais simples e a reflexão parisiense mais profunda. A Nouvelle Vague começaria aqui mas só oito anos mais tarde Paris ficaria a ferro e fogo.

Claro que Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) é um ladrão de automóveis, desinibido e aventureiro, divertido e irresponsável, que não tem poiso nem morada, que se vê apanhado pelo amor da americana Patrícia Franchini (Jean Seberg), ela que, finalmente, o trairá para demonstrar a falsidade pura encerrada no próprio amor. Ao som do inesquecível concerto de Mozart.

A história é apenas essa. Simples, vinda de François Truffaut, sob os cromados de carros americanos e da batuta do jazz, do guarda-roupa modernista, perseguida por um polícia decrépito, quase sujo, e do seu acólito, e depois denunciada pelo próprio Jean-Luc Godard e pela própria Jean Seberg que corre para o quase cadáver e pergunta ao público:

«Qu’est-ce que c’est, dégueulasse?»

Hoje, quando o revejo, em cópia restaurada, apenas reconheço que é um dos filmes mais profundamente encantados da História do Cinema.


jef, abril 2024

«O Acossado» (À Bout de Souffle) de Jean-Luc Godard. Com Jean-Paul Belmondo (Michel Poiccard), Jean Seberg (Patrícia Franchini), Henri-Jacques Huet (Berruti), Jean-Pierre Melville (Parvulescu), Lilliane David (Lilliane), Daniel Boulanger (inspector), Claude Mansard (vendedor de carros usados), Van Doude (jornalista), Jean-Luc Godard (denunciante), Roger Hanin, Michel Fabre, André S. Labarthe, Jean Herman, Jean Douchet, Jean Domarchi. Argumento: Jean-Luc Godard, baseado numa história de François Truffaut. Produção: SNC / Georges de Beauregard. Fotografia: Raoul Coutard. Música: Martial Solal, Mozart. França, 1960, Preto/Branco, 90 min.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário