terça-feira, 2 de abril de 2024

Sobre o livro «Hotel Savoy» de Joseph Roth, Dom Quixote, 2024 (1924). Tradução de José Sousa Monteiro.


 









Um dos aspectos imprevistos na leitura é esse fio conductor, quantas vezes fantasioso, que a memória exibe quando confrontada com o silogismo comparativo de uma sequência de livros lidos.

O facto é que, por acaso ou sugestão literária, li «Hotel Savoy» de Joseph Roth logo a seguir a «Clarissa» de Erico Veríssimo. Enquanto Clarissa, treze anos, quase catorze, vai residir na pensão da tia Eufrasina para estudar em Porto Alegre, no Brasil, Gabriel Dan, judeu vienense, libertado de um campo onde esteve prisioneiro nos confins da Rússia, pelo fim da primeira guerra mundial, pretende regressar a casa e, em trânsito, reside no Hotel Savoy.

O livro do autor brasileiro é de 1933 enquanto o de Joseph Roth é de 1924. Ambos colocam todas as cores da sociedade, entre o vislumbre da esperança e o do desalento, dentro da campânula asséptica que é a estadia temporária num hotel. Daí tudo pode ser observado sem que essa observação nos devolva a sua crítica, tudo pode ser comentado porque o futuro virá mas já estaremos num lugar diverso.

Gabriel Dan vai descansar e verificar como os ricos vivem nos quartos dos pisos inferiores e os pobres e emigrantes mal se acomodam nos andares superiores, muitos dos quais empenhando as bagagens a Ignatz para ali poderem pernoitar. Existem greves e revolucionários, burgueses e magnates americanos que prometem mundos e fundos mas são descobertos a visitar locais longínquos no cemitério. São também encontrados uns triplos gémeos que procuram financiamento para trazerem para a cidade a produção de objectos de diversão. Existe ainda o bar da senhora Jetti Kupfer, onde os donos das fábricas brindam com raparigas nuas, mas a bela Stasia, que entra na Sala das Cinco da Tarde, não presta atenção a Gabriel, nem amor. No teatro Variedades há um número gratuito de sucesso: no centro está August, o burro de Santschin, que é animal inteligente e sensível. A toda a volta do Hotel existe um imenso bairro de lata com grevistas miseráveis prontos para a revolução.

Ainda há uma particular atenção às cores das luvas e ao modelo dos sapatos.

Uma escrita directa, poética, descritiva, sarcástica, alegre e triste ao mesmo tempo. Crónica do mundo real contada com toda a fantasia possível.

Como se Gabriel Dan visse tudo, sentisse tudo mas não se importasse com nada pois o mundo não se importa com ele. Como o anjo, vinha da guerra e só queria partir. Como um certo Hans Castorp, que ia para a guerra, colocado dentro de uma certa «Montanha Mágica» (Thomas Mann, 1924), calcorreando os corredores de «Shining» (Stanley Kubrick, 1980) ou os esconsos sem fim de «Twin Peaks» (David Lynch, 1992), atrás das horas perdidas do coelho de Alice.


jef, abril 2024

 

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