domingo, 30 de junho de 2024

Sobre a peça «A Tempestade», adaptação de Manuel Jerónimo a partir de William Shakespeare. Boutique da Cultura 2024.



 
















































Talvez confirmando o escritor Rui Cardoso Martins quando diz que o humor não é aligeirar, é pelo contrário aprofundar, ou, por outro lado, porque no fim da vida estariam eles realmente fartos de tragédia, Eça de Queirós escreve o extraordinário «A Cidade e as Serras» (1900), Verdi compõe o belo mas tão pouco amado (e shakespeariano) «Falstaff» (1893) e William Shakespeare escreve «A Tempestade» (1611). A trama começa (uma vez mais) com dois irmãos desavindos em luta pelo poder, em Itália. Uma tempestade medonha atira para o confinamento de uma ilha todas as personagens, após naufrágio, onde no final se perdoarão e celebrarão a união de Miranda, filha de Próspero, duque de Milão, com Ferdinando, filho de Alonso, rei de Nápoles. Próspero com poderes mágicos (afinal foi ele que provocou a tempestade, por vingança), o usurpado, perdoa a seu irmão, o usurpador António. O vinho transforma o servo disforme Calibã e Ariel, angélico e assexuado, liberta Próspero das algemas dos seus próprios poderes mágicos. Ah e ainda existe um coelho-mascote que anda perdido pela ilha. Afinal, todos se salvam e com eles a douta plateia que bate palmas efusivamente, alegre e reconciliada com o mundo.

Manuel Jerónimo recruta um mar tempestuoso e divertido de actrizes (e quatro actores) nas oficinas de arte dramática promovidas pela Boutique da Cultura numa encenação tão viva e tão simples, quanto corrida e libertadora. O teatro popular (e jamais popularucho!) para todos sobre a clássica questão do crime, do castigo e do perdão.

Shakespeare deveria gostar mesmo muito desta colorida versão da sua peça derradeira.

E o humor (e o teatro) é mesmo a razão mais profunda do nosso quotidiano.


jef, junho 2024

«A Tempestade». Adaptação e Encenação: Manuel Jerónimo, a partir de William Shakespeare. Com Ana Cotrim, Carina Osório, Carolina Sanches, Celeste Gonçalves, Daniel Céu Silva, Filipa André, Francisco Castelo, Frederico Paradela, Isabel Loureiro, Luísa Pires, Maria Bogo, Marta Fróis e Susana Marques e Teresa Duarte. Desenho de Luz: João Rafael da Silva. Operação Técnica: Gustavo Santos. Boutique da Cultura. 80 minutos.


segunda-feira, 24 de junho de 2024

Sobre a peça «Noite de Reis» de William Shakespeare. Teatro da Trindade, 2024.



 






























O que nos fará entreter (e rir) numa peça de teatro escrita há mais de 400 anos e que surge na adaptação musical de Ricardo Neves-Neves? Será sempre essa comédia de enganos (de género e de classes sociais) vinda do absurdo e de uma época em que as mulheres ainda não pisavam o palco, esse antro demoníaco de perversidade social e sexual. Enfim, certamente também um motivo de diversão desde os tempos clássicos e helénicos. Esse eterno motivo que, dizem, mais tarde, ter vindo ajudar a provocar revoluções à francesa, de Beaumarchais e Marivaux, ou até aos nossos dias e às novelas televisivas da actualidade.

De facto, durante o naufrágio provocado por uma tempestade, dois irmãos gémeos, Sebastião e Violeta, são separados. Violeta pensando que o irmão morrera na tragédia, chegando a Ilíria, mascara-se de homem e emprega-se como pajem do duque Orsino levando cartas deste à sua apaixonada Olívia que, claro, não o ama. O pajem, agora Cesário, entra no campo minado do amor pois encanta-se logo por Orsino e Olívia encanta-se por Cesário, afinal Violeta. Como resolver a questão? Devolvendo, regressado das águas, Sebastião, o irmão gémeo e redistribuindo o jogo novamente. Para Shakespeare esta intriga não chega e vai semeando a intriga de episódios e personagens, cópias burlescas do que seria o ambiente social da corte isabelina.

Sobre o burlesco do dramaturgo, Ricardo Neves-Neves sobrepõe sem desvirtuar ou tornando virtual a antiga comédia sob os holofotes de Gloria Gaynor, Spice Girls ou Nino Rota. E se todos os personagens são interpretados por homens, a orquestra e coro são compostos apenas por mulheres. O curioso é que Ricardo Neves-Neves consegue expor a extra-sexualidade dos actores e das músicas numa contenção fundamental que impede (e seria muito fácil) o espectáculo de cair numa “chacota de género”, facto que, hoje em dia, digamos, começa a ser uma permanente e enfadonha de quase ridícula pecha. Impedindo o riso alarve, a encenação ultra-burlesca é contida por pormenores tão discretos quanto hilariantes. Recorde-se, o pintainho de Olívia e o rouge que esta coloca na cara, ou a caixa de surpresas que Malvolio transporta dentro da cabeleira. Sem esquecer que o cenário, afinal, se compõe somente e do principio ao fim por duas nuvens toscas de algodão em rama e três ou quatro simples telas-pórticos. A imaginação do espectador ao poder!

William Shakespeare nas mãos de Ricardo Neves-Neves (e dos seus brilhantes actores e músicas) não será para todos (apesar de sempre o ser!)


jef, junho 2024

«Noite de Reis». Texto: William Shakespeare. Versão dramatúrgica e encenação: Ricardo Neves-Neves. Cenografia: Ana Paula Rocha. Figurinos: Rafaela Mapril. Direcção Musical: Renato Júnior. Coro: João Paulo Santos. Figurinos: Marisa Fernandes. Caracterização e perucas: Dennis Correia e marco Santos. Desenho de luz. Cristina Piedade. Com António Ignês, Cristóvão Campos, Dennis Correia, Filipe Vargas, João Tempera, Joaquim Nicolau, José Leite, Manuel Marques, Marco Delgado, Rafael Gomes, Ruben Madureira, Rui Melo e Tomás Alves. Direcção musical: Rita Nunes. Orquestra e coro: Helena Silva, Carolina Duarte, Teresa Soares Sara Oliveira, Teresa Martins, Daniela Pinheiro, Solange Silva, Juliana Campos, Rita Nunes, Nádia Anjos, Eliana Lima, Inês Laginha, Mariana Godinho, Teresa Braga, Beatriz Ventura, Filipa Portela, Isabel Cruz Fernandes, Rita Carolina Silva e Sara Brites. Teatro da Trindade. 120 minutos.

 

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Sobre o livro «As Mentiras que os Homens Contam» de Luis Fernando Verissimo, Dom Quixote 2016.



 







No início, parece ser um conjunto de crónicas sobre a mentira. No fundo, são uma série de textos onde a mentira é a personagem principal. Contudo, a realidade neles surge essencialmente como móbil para a ficção. Aí, transformam-se em contos pequenos e histórias minúsculas que poderiam ser colocadas ao lado das divagações do absurdo de Woody Allen ou, seguindo a premissa de contenção narrativa, de Robert Walser, ou até do sarcasmo irónico de Guy de Maupassant, Nikolai Gógol ou Ray Bradbury. Afastam-se das crónicas de Ricardo Araújo Pereira ou de Rui Cardoso Martins pois a realidade encontra-se transformada pela fantasia do insólito e pela força do diálogo assertivo, vindo de algum teatro radiofónico ou de certa peça televisiva. Textos para levar à cena.

Na verdade, Luis Fernando Verissimo transporta para as suas divagações sociais o divertimento sub-reptício de que a vida-comum se mune para conseguir sobreviver. O homem mente por necessidade, por instinto ou para salvar o mundo. Sem a mentira, o mundo (que parece estar agora prestes a colapsar) já teria colapsado há algum tempo. E as mulheres já teriam desistido dos homens, os amigos destes ter-lhes-iam fechado a porta na cara, as famílias desaparecido.

Uma leitura ágil e divertida que pelo humor e inteligência nos faz ainda ter esperança no Homem e no homem, apesar da sua congénita tendência para a mentira.

jef, janeiro 2024

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Sobre o livro «Smoke Bellew» de Jack London, Livraria Civilização 1966 (1912). Tradução e Capa de Aureliano Sampaio.



 







Se existe um autor sério que é porto de abrigo para a leitura de aventuras, ele é Jack London. A ele voltamos com aquele espírito infantil de descobrir uma floresta acolhedora e forte mas também coberta de gelo, provações, privações, lobos e pesquisadores de ouro.

Aqui se contam seis aventuras, mais ou menos falhadas, mais ou menos humorísticas, mais ou menos românticas de Christopher Bellew que, no colégio se torna Chris Bellew; que em São Francisco, entre copos e jornais decadentes, como o Billow, passa por Kit Bellew. Mais tarde, invectivado pelo austero, talvez espartano, tio John Bellew, parte para o gelado e inóspito Klondike, a caminho de Dawson, no Yukon. Aí passará a Smoke Bellew, deixando de ser o copinho de leite e chechaquo, tornando-se um verdadeiro bandeirante do ouro. Encontrará a bela e irreverente Joy Gastell e partilhará as provações e o humor com o companheiro de tropelias Shorty.

Comprei-o na Feira do Livro de Lisboa, no dia 18 de junho de 1974, como anotei na folha de rosto, já lá vão os bem medidos 50 anos, certamente motivado pelo meu pai, pois Jack London era um dos seus autores predilectos.

Um livro de puro prazer de leitura. Belamente traduzido e com uma capa linda, ambos de Aureliano Sampaio.

 

jef, junho 2024

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Sobre o filme «Assassino Profissional» de Richard Linklater, 2023







Richard Linklater é mesmo muito bom a realizar esta comédia policial que poder-se-ia rotular de banal, despretensiosa, para ser vista ao domingo à tarde na televisão.

É a história (relativamente real) deste pacífico professor americano de filosofia e psicologia, ajudante nas horas vagas da polícia, que afinal tem um dom especial para se travestir de assassino profissional e ajudar a instituição a detectar futuros crimes premeditados a troco de dinheiro. Assim, a dupla vida de Gary Johnson (ou Ron) (Glen Powell) muda radicalmente. E mais ainda muda quando conhece a provável assassina Madison (a belíssima Adria Arjona).

Linklater deixa os actores moverem-se de modo emocional, ágil e caricatural, quase a tocar no burlesco mas sem nunca o praticar, quase domesticando-o ou intelectualizando-o, através de um diálogo imparável que não destoa da “filosofia policial”. Lembrei-me de Billy Wilder ou Quentin Tarantino.

Um imperdível filme “banal” que deixa na memória os actores Glen Powell, Adria Arjona e Austin Amelio.


jef, junho 2024

«Assassino Profissional» (Hit Man) de Richard Linklater. Com Glen Powell, Adria Arjona, Retta, Austin Amelio, Molly Bernard, Kagga Jayson, Mike Markoff, Beth Bartley, Evan Holtzman, Julia Holt, Roxy Rivera, Sanjay Rao. Argumento: Richard Linklater, Glen Powell segundo o artigo de Skip Hollandsworth. Produção: Jason Bateman, Mike Blizzard. Fotografia: Shane F. Kelly. Música: Graham Reynolds. Guarda-roupa: Juliana Hoffpauir. EUA, 2023, Cores, 115 min.

 

 

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Sobre o filme «MMXX» de Cristi Puiu, 2023













Muito interessante mesmo como o realizador de «Malmkrog» (2020) se afasta dessa estratégia de oferecer literatura (e leitura) ao cinema, aproximando-se aqui do iniciático «A Morte do Sr. Lazarescu» (2005). Um filme gerado sob a égide das máscaras do COVID 19 numa quase crónica de costumes confinados, quase comédia, quase tragédia, efectuada em quatro estações-episódios separadas por imagens de uma macro-vegetação que tenta esconder a todo o custo as partes do lixo humano. No final, a câmara afasta-se da lixeira-pousio vegetal e concede-nos o olhar, ao longe, de uma família feliz que se afasta passeando serena pelo campo.

Entretanto, a câmara ficara quase parada em dois dos episódios onde nos são narradas as histórias de um questionário-diagnóstico para um sequente tratamento psico-social e, no outro, de uma noite de paixão com a amante de um perigoso mafioso. Na seguinte, a câmara quase enlouquece em torno de uma mesa de cozinha, às voltas sem préstimo de uma batedeira eléctrica desaparecida ou de um internamento de urgência de uma grávida num hospital para COVID. Por fim, no que parece um suicídio duplo, entre velório e estufas precárias, um inspector da polícia entrevista uma mulher prostituta-proxeneta que nos narra (sem máscara) toda a história secreta de uma Roménia que, afinal, é a história de toda a Europa, de emigrantes e desespero.

Cristi Puiu faz da câmara o agente passivo da crónica do Mundo e dos actores, essas entidades que se cruzam, sem tempo, com os minutos sistemáticos vividos (com préstimo) pelas fantásticas criaturas que interpretam.


jef, junho 2024

«MMXX» de Cristi Puiu. Com Bianca Cuculici, Laurentiu Bondarenco, Otilia Panaite, Florin Tibre, Igor Babiac, Roxana Ogrendil, Adelaida Perjoiu, Dorian Boguta, Dragos Bucur, Marin Cumatrenco. Argumento: Cristi Puiu. Produção: Anca Puiu. Fotografia: Ivan Grincenco, Silviu Stavila. Roménia, 2023, Cores, 160 min.

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Sobre o livro «Neve» de John Banville, Minotauro 2023. Tradução de Sónia Amaro. Revisão de Joana Baudouin.

 


 








A história desenrola-se numa Irlanda que ainda se agride com as feridas da religião e da independência. O padre católico Tom Lawless é assassinado em Ballyglass na mansão de uma família protestante pouco tradicional, quase em descrédito financeiro, de costumes e de sanidade emocional. Isto é revelado nas primeiras cinco páginas deste belo romance policial. Dividido em quatro partes, estende-se pelas décadas de 1947, 1957 e 1967. Não exactamente por esta ordem.

O coronel Osborne faz as honras da casa e o taciturno detective Strafford (com r) deambula pela neve de um inverno rigoroso em busca de pistas. É secundado pelo sargento Ambrose Jenkins que insiste em manter uma poupa no cabelo, emproada com Brylcreem, tentando esconder o formato pouco habitual do seu crânio.

No fundo, Strafford é o croupier que vai descrevendo sem julgar as diversas personagens, narrando-se também a si mesmo através da arreigada solidão, esta que encontra na mansão de Ballyglass a réplica do cenário do seu próprio passado.

Um bom romance policial distingue-se pela teimosia da observação morfológica do narrador, quase humor, quase amor, deixando-nos ir através da cor dos casacos e do cheiro de salas e esconsos. Pelos tiques e características com que carrega, risível, cenas e personagens. Um vício diria oitocentista e intemporal. E se aqui relembro Georges Simenon ou Raymond Chandler é apenas para dizer que John Banville faz parte desse oratório de fazedores de santos detectives, obstinados e a um passo da depressão solitária.

Pena é que a tradução (ou revisão) nos faça tropeçar em gatos e gralhas. Uma zoologia etimológica que sistematicamente, ao longo do texto, confunde as coisas distintas que são golas e colarinhos! Mesmo assim não chega para estragar o prazer da leitura deste magnífico romance.

 

jef, junho 2024