sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Sobre o filme «A Torre sem Sombra» de Zhang Lu, 2023



 



















Um filme que, de modo lírico, confirma que a existir um único tema no cinema (talvez na arte) esse é a solidão. Ou melhor, esse estranho, por vezes confortável, outras vezes insuportável, hábito ou rotina solitários que se entranha com o tempo no nosso singular e interior modo de percorrer o dia-a-dia.

«A Torre sem Sombra» é um templo budista nos arredores de Pequim, com séculos de existência e que parece não lançar sombra apesar do ângulo de que esteja a ser olhado. Ali perto mora Gu Wentong (Xin Baiqing), um homem de meia-idade que se dedica à crítica gastronómica, divorciado, pai de uma menina inteligente e carinhosa que vive com a tia, irmã do pai. Gu Wentong, homem bondoso que reside na casa que fora da mãe, recebe do cunhado um papelinho com um número de telefone no dia em que foram visitar a campa da mãe. A partir dali, duas ou três histórias cruzam-se ligando um passado de certo modo oculto ou mal interpretado e um futuro que parece não se enquadrar facilmente nas normas sociais ou afectivas a que Gu Wentong, afinal, habituou a sua solidão. Um facto é que a desconcertante exuberância da fotógrafa que o secunda na tarefa jornalística, de nome impronunciável, Ouyang Wenhui (Huang Yao), vem de modo inusitado ligar o presente a esse passado. No fundo, um passado ancestral da China que mal reconhece a transformação cosmopolita e digital do futuro que está ali mesmo ao virar da esquina.

O melhor do filme é esse lado bondoso, humorístico mesmo, de ligar a insondável nostalgia regressada das tradicionais canções chinesas a um certo futuro enraizado na benevolente lógica do perdão.

Talvez para isso mesmo necessário andar para a frente mas de costas viradas, como um anónimo transeunte no parque ensinou a fazer a Gu Wentong.

  

jef, agosto 2024

«A Torre sem Sombra» (The Shadowless Tower) de Zhang Lu. Com Xin Baiqing, Huang Yao, Tian Zhuangzhuang, Ji Nan, Wang Hongwei, Li Qinqin, Wang Yiwen, Liu Wanting. Argumento: Zhang Lu. Produção: Xu Jiahan, Peng Jin, Zhang Jian, Huang Yue, Lu Sheng. Fotografia: Piao Songri. Música: He Xiao. China, 2023, Cores, 144 min.

 

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Sobre o filme «O Longo Adeus» de Kira Muratova, 1971



 
























Gosto particularmente destes filmes em que somos atirados para dentro da história sem aviso prévio.

Estamos num viveiro de flores em sistema hidropónico, os trabalhadores circulam, a explicação botânica entra, os clientes aparecem depois. Talvez estejam perto do cemitério. Há que arranjar e florir a campa do avô. Yevgeniya (Zinaida Sharko), alegre e desenvolta, tira o belo chapéu e coloca o véu, por respeito. Conta ao filho adolescente, Sacha (Oleg Vladimirsky), como o avô era também divertido. Sacha segue-a próximo mas à distância, observando a energia da mãe. Depois vem a sequência do comboio em direcção a uma festa numa casa rica à beira-mar-negro. Aqui é ouvido primeiro o mar, só depois o veremos.

A arquitectura das imagens e do som é fundamental para o leitor-espectador construir a história através dos episódios que surgem sem explicação. A beleza das imagens e do seu enquadramento absorve quantas vezes a atenção do espectador que tem de desviar os olhos das legendas. E um facto é que parte da história está a ser contada apenas pelas imagens e pelo som daquela narrativa seccionada, fragmentada, sincopada, modernista.

Cada sequência de cenas vai-nos oferecendo acima de tudi a profundidade emocional, quase psicanalítica, de uma mãe híper-activa e desesperada por ver o filho distanciar-se, fruto da puberdade emergente, da vontade de rejeitar o controlo maternal e o desejo, quase onírico, de ir viver com o pai ausente (talvez fugitivo) revivido por slides que remontam à arqueologia e a cartas ou telefonemas que serão espiados pelo desespero da mãe.

Se o filme inicia pelo viveiro-cemitério, fora do tempo e da sociedade, pelo contrário termina com uma festa administrativa de atribuição de galardões e onde uma mãe busca exasperadamente a proximidade do filho.

Um daqueles filmes que nunca mais sairão da memória, dos olhos e dos ouvidos do espectador. Não tem tempo ou espaço. Parece de ontem mas é de futuro que fala, parece soviético e oriental mas é moderníssimo e quase britânico, parece uma sucessão de quadros e de canções, uma sequência íntima de segredos, mentiras e confidências, onde os planos centrados sobre os actores e os ligeiros planos maiores constroem um magnífico álbum de fotografia.

Filme-ícone que, por vezes, me levou a recordar o dicionário de arquitetura de Michelangelo Antonioni/Monica Vitti ou o compêndio expressionista de John Cassavetes/Gena Rowlands.

«O Longo Adeus» é imperdível e sublime é Zinaida Sharko!


jef, agosto 2024

«O Longo Adeus» (Dolgie Provody) de Kira Muratova. Com Zinaida Sharko, Oleg Vladimirsky, Yuriy Kayurov, Svetlana Kabanova, Lidiya Bazilskaya, Sofya Belskaya, Andrey Borisenko, Marchella Chebotarenko, Yelena Demchenko, G. Devyatova, Lidiya Dranovskaya, Oleg Emtsev, Viktor Ilchenko, Evgeniy Kovalenko, A. Maslakov, Tatyana Mychko, N. Parfyonova, Nikolay Rozhkov, Igor Starkov, Viktor Strizhov. Argumento: Natalya Ryazantseva. Produção: Gennady Karyuk. Fotografia: Sven Nykvist. Música: Oleg Karavaychuk. Guarda-Roupa: Natalya Akimova. URSS, 1971, P/B, 97 min.

 


segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Sobre o filme «Depois do Ensaio» de Ingmar Bergman, 1984


 






















Por vezes, no início, uma voz off  sobrepõe-se, como um pensamento crítico, à cena e à própria voz de quem pensa. A voz nega e contradiz a acção e a palavra que está naquele momento a ser dita. Quem fala (sobrepondo) e que (nos) pensa é o encenador Henrik Vogler que tem o hábito de ficar a dormitar, reflectindo,  sobre a secretária em palco depois dos ensaios de «O Sonho» de Strindberg. Henrik Vogler é representado por Erland Josephson que representa Ingmar Bergman que encenou por mais de uma vez tal peça. Henrik é interrompido na sua sonolência dramática por Lena Olin, a actriz que é Anna, que anda a ensaiar o papel na peça de Strindberg, com o falso pretexto de procurar uma pulseira perdida. Anna confessa a Henrik que odeia a própria mãe Rakel (Ingrid Thulin) que foi em tempos amante daquele e um dia também o visitou no palco vazio após um ensaio. Rakel regressa à cena, num segundo Tempo – Acto, sublinhando a frase que conta como o teatro é a arte da repetição, e a repetição, a arte da verdade e da sua própria negação. Como sugere a voz off.

Um filme enorme e definitivo, encerrado no amor pelo teatro e na rejeição pelo pó de palco claustrofóbico em que aquele se encerra e consome. Tal como o passar do tempo e o confronto inexorável com a velhice.

Porém, o palco, esse, nunca envelhecerá.


jef, agosto 2024

«Depois do Ensaio» (Efter Repetitionen) de Ingmar Bergman. Com Erland Josephson, Ingrid Thulin, Lena Olin, Nadja Palmstjerna-Weiss, Bertil Guve. Argumento: Ingmar Bergman. Produção: Jörn Donner. Fotografia: Sven Nykvist. Suécia, 1984, Cores, 70 min.

sábado, 24 de agosto de 2024

Sobre o livro «Olhai os Lírios do Campo» de Erico Veríssimo, Livros do Brasil – XVIII edição (? / 1938)


 








É a história (ou saga pessoal, quase analítica) do médico Eugénio Fontes. Talvez a queda e ascensão de alguém que se reergue a custo dos remorsos da própria e furiosa rejeição da primordial miséria familiar.

Uma espécie de realismo modernista pontuado pelo discurso de Jesus na montanha que invectiva quem prefere a vaidade e o luxo à justiça e à obrigação a Deus. Realizado a dois tempos.

O primeiro tempo, a queda. Dura todo o caminho nocturno de automóvel de Eugénio Fontes enquanto recorda, por longas analepses, o seu percurso desde a infância paupérrima até à maturidade e a sua relação com Olívia. Ela é o contraponto afectivo e moral, apesar de ausente do caminho definitivo traçado por Eugénio. A voz do dono.

No segundo tempo, a ascensão. Olívia torna-se presente quase conductora espiritual, apesar de em modo epístolar, e Eugénio renega o luxo, entrega-se à medicina dos pobres, ao ascetismo, quase se torna agnóstico.

Erico Veríssimo é um exímio contador de histórias e um ilustre fazedor de personagens, máscaras, caricaturas humanas. Já o sabíamos por Clarissa, esse belíssimo romance iniciático. Aqui, o escritor consegue caricaturar (e pôr-nos a odiar) as exibições burguesas e capitalistas do magnate Vicente Sintra ou de Filipe Lobo, ou o fascismo literato de Acélio Castanho. Ao mesmo tempo coloca-nos totalmente a favor do médico sem tostão, o descrente Dr. Seixas, ou do falso (mas verdadeiro médico informativo) Dr. Florismal, ou do benevolente casal alemão Frida e Hans Falk.

E se, por vezes, provoca no leitor a aversão ao oportunismo e indecisão, mesmo hipocrisia de Eugénio, Erico Veríssimo liberta-se literariamente das suas figuras tutelares (Eugénio e Olívia, o mal regenerado e o bem ecuménico) ao descrever os vários casos clínicos a que, a alguns, apelida de Fausto, Pigmalião ou Hamlet.

Por aqui tudo passa. Mussolini, Hitler, o deslumbramento perante o nazismo, o antissemítico primário, a revolta dos anos 30 e a sombra de Getúlio Vargas. Também a exigência de distribuição equitativa da riqueza, de justiça e paz globais. Contudo, durante todo o romance perpassa a sombra da resignação perante as desigualdades. Não há sombra de consciência de classe, de organização ou de revolta.

Por isso, parece-me que (ao contrário de «Clarissa») este romance realista tornar-se-á quase anti-neorrealista.

A seguir, lerei «Saga» (1940).


jef, março 2024

domingo, 18 de agosto de 2024

Sobre o filme «Violência e Paixão» de Luchino Visconti, 1974

 













































Não existe título português mais estranho.

Um filme que começa por ser como uma entrada brusca no salão de um velho professor (Burt Lancaster), colecionador e restaurador de arte, quando este está a recusar a compra de um quadro que um marchand lhe tenta vender. Entretanto, uma figura feminina deambula pelos aposentos medindo o espaço, avaliando o andar superior que observa a partir da soberba varanda do palacete. Ela é a marquesa Bianca Brumonti, intrusa que nada terá a ver com a aquisição do quadro. Apenas deseja alugar o andar superior para o seu amante Konrad Huebel (Helmut Berger), a sua filha Lietta (Claudia Marsani) e o namorado desta, Stefano (Stefano Patrizi). O professor arrepende-se, afinal deseja adquirir o quadro mas este terá sido já vendido. Afinal, foi Bianca que o comprou para lho oferecer, de certo modo obrigando-o a alugar-lhe o piso superior que está a precisar de profundas obras.

A partir dali, o que parece ser uma espécie de comédia sobre obras e condomínios não é mais do que a revisitação de um passado longínquo. São absolutamente assombrosas as cenas fragmentadas, quase inexplicadas, através das quais o espectador entra, mais uma vez como breve intruso, no passado do professor (o véu branco em torno de Claudia Cardinale, as rosas em torno de Dominique Sanda). Também como será tão breve o tempo futuro do professor, estilhaçado pela entrada alvoroçada daquela família jovem e futurista e por aquele incómodo hóspede Konrad que o entende como ninguém na apreciação dos quadros que enchem as paredes do palacete e que retratam eternamente famílias que há muito deixaram de existir. Ele trata Konrad como o filho rebelde que não terá tido.

Sim, existe violência consequente e paixão exacerbada mas muito mais próximo está do confronto com um doméstico retrato de família. O espectador é convidado a participar primeiro no desespero de um velho professor arrancado da sua quieta melancolia e do amor por um passado irreversível; mais tarde confrontado com a ausência de um mundo exterior do qual se retirou e agora lhe é oferecido de bandeja. Porém, definitivamente tarde demais.

No final, intrusos novamente, somos igualmente convidados a retirarmo-nos, reverentes e em silêncio.

Um filme sobre tudo. Um filme maravilhoso.


jef, agosto 2024

«Violência e Paixão» (Gruppo di famiglia in un Interno) de Luchino Visconti. Com Silvana Mangano, Burt Lancaster, Helmut Berger. Claudia Marsani, Stefano Patrizi, Elvira Cortese, Philippe Hersent, Guy Tréjan, Jean-Pierre Zola, Umberto Raho, Enzo Fiermonte, Romolo Valli, George Clatot, Valentino Macchi, Vittorio Fanfoni, Lorenzo Piani, Margherita Horowitz. Claudia Cardinale, Dominique Sanda. Argumento: Enrico Medioli, Suso Cecchi D'Amico, Luchino Visconti. Produção: Giovanni Bertolucci. Fotografia: Pasqualino De Santis. Música: Franco Mannino. Guarda-roupa: Vera Marzot Itália / França, 1974, Cores, 120 min.


sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Sobre o livro «A Prisão» de Georges Simenon, Dom Quixote 1989 (1961). Tradução de Miguel Serras Pereira.



 











«Quantos meses, anos, são precisos para fazer de uma criança um adolescente, de um adolescente um homem? Em que momento se pode afirmar que ocorre a mutação?

Ao contrário do que se passa nos estudos, não há aqui proclamação solene, nem distribuição de prémios, nem diploma.

Alain Poitaud, aos trinta e dois anos, não levou mais do que algumas horas, talvez alguns minutos, para deixar de ser o homem que até então fora e se transformar num outro.»

 

Começa assim a história de um empresário de sucesso no ramo da imprensa social parisiense. Uma empresa que, agora, ocupa quase por completo um grande edifício na Rua de Marignan. Alain tem um casamento estável com Jacqueline, antes Gatinha, como todos a conhecem. Afável e ultra sociável, a todos trata com ternura como “coelhinha” e “coelhinho”. Tem sucesso com as mulheres e é muito respeitado entre pares. Conhece todos os recantos de Paris e os melhores restaurantes e bares onde logo surge sobre o balcão o whisky duplo antes de ele mesmo pedir. O casal habita um amplo e elegante apartamento remodelado a partir de um atelier de pintura, na Rua Fortuny.

A 18 de Outubro, recebe a notícia que lhe alterará a perspetiva do seu confortável mundo.

Uma notícia que o leitor sabe nas páginas iniciais e que não será alterada até à última, já que Georges Simenon coloca a desenfreada intriga nos passos dados pelo protagonista naqueles três dias.

Um livro excepcional escrito por um autor com um génio imparável.

Soberbo!

jef, agosto 2024

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Sobre o filme «O Diário de Uma Criada de Quarto» de Jean Renoir, 1946

 






















Entre «Diário duma Criada de Quarto» de Luis Buñuel (1963) e «Diário de Uma Criada de Quarto» de Jean Renoir (1946) existem duas Céléstines – Jeanne Moreau e Paulette Goddard. Duas irreverências absolutas construídas à medida de cada um dos génios dos dois realizadores. A Céléstine de Jeanne Moreau é obscura, misteriosa, senhora de si e de uma densa névoa que a faz sobreviver no casarão para a qual foi contratada, vivendo entre o seu querer e as circunstâncias com que ali se vai deparando. Enquanto a Céléstine de Paulette Goddard se declara, jovial e revolucionária, destruidora das velhas máximas decadentes, aristocráticas e monárquicas, ao ver-se, vinda de Paris, a entrar na velha mansão rural do casal Lanlaire que se fecham a sete chaves, usando a baixela de prata,  na noite de 14 de Julho, enquanto a aldeia inteira celebra a Bastilha na data festiva.

Apesar do final ter sido alterado no romance de Octave Mirbeau, colocando Céléstine a partir de comboio com o filho endinheirado Georges Lanlaire (Hurd Hatfield) após ver desaparecer o velhaco mordomo Joseph (Francis Lederer). Apesar de tudo, ela quase sorri pois provavelmente não esquece que este contraiu uma doença que se apresenta mais ou menos em estado terminal.

É impossível não reparar como Jean Renoir é um sedutor estético, um provocador social, de uma libido política exacerbada. Recordo «O Crime do Sr. Lange» (1935), «A Regra do Jogo» (1939) ou «Helena e os Homens» (1956) – o contrato social é sempre desmascarado, mesmo profundamente adulterado; a multidão movimenta-se num permanente bailado operárico instigada pela folia ou instigando o poder vigente, mas sem nunca esquecer que estão a pisar um palco restricto; e as mulheres surgem maravilhosamente sedutoras, agentes determinadas da revolta, capazes de derrotar o sexo forte levando a revolução pelo seu lado mais inusitado e estético.

É curioso com o olhar de Paulette Goddard faz verter a permanente dúvida sobre Céléstine, sobre cada um dos seus gestos, dos seus sorrisos, das suas intenções.

Um filme em ininterrupta sedução.


jef, agosto 2024

«O Diário de Uma Criada de Quarto» (The Diary of a Chambermaid) de Jean Renoir. Com Paulette Goddard, Burgess Meredith, Hurd Hatfield, Francis Lederer, Judith Anderson, Florence Bates, Iréne Ryan, Reginald Owen, Almira Sessions, Edward Astran, Arthur Berkeley, Chet Brandenburg, Egon Brecher, Jane Crowley, Sumner Getchell. Argumento: Jean Renoir e Burgess Meredith segundo o romance de Octave Mirbeau e adaptação teatral de André Heuzé, André de Lorde e Edouard Norès. Produção Benedict Bogeaus, Paulette Goddard, Burgess Meredith. Fotografia: Lucien N. Andriot. Música: Michel Michelet. Guarda-roupa: Barbara Karinska. EUA, 1946, P / B, 87 min.

 

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Sobre o filme «Sede» de Ingmar Bergman, 1949



 



































A história lança o espectador atrás da nevrótica instabilidade de Rut (Eva Henning) enquanto acompanhamos a aflição de seu marido Bertil (Birger Malmsten) que, amando-a, também não a suporta naquela espécie de caos doméstico. Quer dentro de um quarto em permanente desarrumação, quer num compartimento de comboio onde, pela noite, a sombra da morte, suicídio ou assassínio, vai-se insinuando. Um comboio que vem da Sicilia até Estocolmo passando por Basileia. Numa das estações dois comboios param janela contra janela e Rut é confrontada com um casal: Raoul (Bengt Eklund) e Astrid (Gaby Stenberg). Raoul, austero e leviano militar, fora seu amante, de quem estivera grávida e cujo aborto provocara esterilidade e o fim da carreira como bailarina. Talvez a razão primordial da sua inconstância.

Depois surge a história de Viola (Birgit Tengroth), uma antiga relação de Bertil, do seu psiquiatra Dr. Rosengren (Hasse Ekman), da sua amiga Valborg (Mimi Nelson)…

Histórias cruzadas no tempo e no espaço, como se corrêssemos atrás do desvario de Rut ou do amor inquieto de Bertil. Terminando com as imagens de um céu obscurecido ou clarificado pelas nuvens nesse “happy – unhappy” onde se deseja que até os maus momentos possam ser vividos em comum.

Um filme belo e fragmentado onde cada sequência parece antecipar os filmes que Ingmar Bergman ainda nem teria sonhado realizar. De «Morangos Silvestres» (1957) a «Um Verão de Amor» (1951) ou a «Cenas da Vida Conjugal» (1973).


jef, agosto 2024

 «Sede» (Törst) de Ingmar Bergman. Com Birger Malmsten, Eva Henning, Birgit Tengroth, Hasse Ekman, Mimi Nelson, Bengt Eklund, Gaby Stenberg, Naima Wifstrand, Sven-Eric Gamble, Carl Andersson, Gunnar Nielsen, Estrid Hesse, Helge Hagerman, Calle Flygare, Öllegård Wellton, Sif Ruud. Argumento: Herbert Grevenius baseado na novela de Birgit Tengroth. Produção: Allan Ekelund. Fotografia: Gunnar Fischer. Música: Erik Nordgren. Suécia, 1949, P /B, 90 min.


terça-feira, 6 de agosto de 2024

Sobre o filme «Do Fundo do Coração» (Reprise) de Francis Ford Coppola, 1981






















































Este filme é um paradoxo.

Depois de «Apocalipse Now” (1979), aparece «Do Fundo do Coração». Das filmagens colossais na floresta húmida e demente, com interrupções, atrasos, doenças e mosquitos, chega uma comédia nostálgica e musical totalmente construída à sombra de umas Las Vegas de pladur, néons a fingir e fios eléctricos ligados às tomadas dos estúdios da Zoetrope.

Depois do cinema espectáculo realista vem o espectáculo cenográfico e teatralmente dramático. De um deslumbramento para outro deslumbramento.

E para um coleccionador dos discos de Tom Waits, um arrebatado deslumbramento!

Só que o paradoxo é que estas Las Vegas falsas são talvez as mais verdadeiras que podiam ser imaginadas pois no teatro não é permitido fingir. E «Do Fundo do Coração» é teatro. Está lá tudo, real e puro, apesar de "fingido". E num cenário de teatro a verdade é muito simples – é apenas a que ali está e o que sobre ela o espectador, com a sua memória, depois imagina. E em «Do Fundo do Coração» as cenas cruzam-se realmente e em simultâneo por entre cenários reais e telas e holofotes que as fazem duplicar como no teatro isabelino ou nas grande óperas de Verdi, onde os casais cantam em simultâneo formando quartetos unidos pelos amor e pela tragédia. Frannie (Teri Garr) e Hank (Frederic Forrest), no 4 de julho e aniversário do seu casamento, desentendem-se e partem para comemorar a liberdade triste naquele Dia da Independência. Frannie encontra Ray (Raul Julia), um falso músico, e Hank encontra Leila (Nastassja Kinski), uma artista de um pobre circo. E a comédia é triste e os famosos acordes cantados em dueto por Tom Waits e Crystal Gayle aprofundam a noite americana. Os actores não cantam como em qualquer musical americano mas Frannie e Ray dançam sob uma paradisíaca noite junto ao oceano pintado na tela. Leila, funâmbula ou numa gigante taça de Martini, dança para Hank enquanto este coloca as buzinas dos carros da sua oficina a fazerem-lhe a devida vénia. E sobre tudo há o deserto.

Todo o deslumbramento desejava que a história se consolidasse numa comédia com final feliz. Mas não. Como nos mais nostálgicos filmes de Fellini, a alegria, essa sim, surge como falso pano de fundo para uma realidade que se torna mais triste debaixo da luz feérica com que a sociedade impinge a cada minuto os produtos que fabrica. A hipoteca para uma casa própria ou um bilhete duplo para Bora Bora?

Como poderia um filme destes ser um sucesso de bilheteira na América do início dos anos 80. Mais absurdo que paradoxo.

Filmado estrategicamente ao minuto e ao milímetro, tudo aqui é lindo.

«Do Fundo do Coração» é mesmo uma peça única (com o som de um dos meus discos favoritos!), revista em reprise pela minha memória de hoje e pela dimensão dramática do mundo, do teatro e do cinema. 43 anos depois.


jef, agosto 2024

«Do Fundo do Coração» (One from the Heart - Reprise) de Francis Ford Coppola. Com Frederic Forrest, Teri Garr, Raul Julia, Nastassja Kinski, Lainie Kazan, Harry Dean Stanton, Allen Garfield, Jeff Hamlin, Italia Coppola, Carmine Coppola, Edward Blackoff, James Dean, Rebecca De Mornay, Javier Grajeda, Cynthia Kania, Monica Scattini. Argumento: Armyan Bernstein e Francis Ford Coppola segundo a história de Armyan Bernstein. Produção: Iain Canning, Guy Heeley, Joanna Laurie, Emile Sherman. Fotografia: Ronald Víctor García. Música de Tom Waits com Crystal Gayle. Guarda-roupa: Ruth Morley. EUA, 1981, Cores, 107 min.