Gosto
particularmente destes filmes em que somos atirados para dentro da história sem aviso
prévio.
Estamos
num viveiro de flores em sistema hidropónico, os trabalhadores circulam, a explicação
botânica entra, os clientes aparecem depois. Talvez estejam perto do
cemitério. Há que arranjar e florir a campa do avô. Yevgeniya (Zinaida Sharko),
alegre e desenvolta, tira o belo chapéu e coloca o véu, por respeito. Conta ao
filho adolescente, Sacha (Oleg Vladimirsky), como o avô era também divertido.
Sacha segue-a próximo mas à distância, observando a energia da mãe. Depois vem
a sequência do comboio em direcção a uma festa numa casa rica à beira-mar-negro.
Aqui é ouvido primeiro o mar, só depois o veremos.
A arquitectura das imagens e do som é fundamental para o leitor-espectador construir a história através dos episódios que surgem sem explicação. A beleza das imagens e do seu enquadramento absorve quantas vezes a atenção do espectador que tem de desviar os olhos das legendas. E um facto é que parte da história está a ser contada apenas pelas imagens e pelo som daquela narrativa seccionada, fragmentada, sincopada, modernista.
Cada
sequência de cenas vai-nos oferecendo acima de tudi a profundidade emocional, quase
psicanalítica, de uma mãe híper-activa e desesperada por ver o filho distanciar-se, fruto da puberdade emergente, da vontade de rejeitar o controlo
maternal e o desejo, quase onírico, de ir viver com o pai ausente (talvez
fugitivo) revivido por slides que remontam à arqueologia e a cartas ou
telefonemas que serão espiados pelo desespero da mãe.
Se
o filme inicia pelo viveiro-cemitério, fora do tempo e da sociedade, pelo
contrário termina com uma festa administrativa de atribuição de galardões e
onde uma mãe busca exasperadamente a proximidade do filho.
Um daqueles filmes que nunca mais sairão da memória, dos olhos e dos ouvidos do
espectador. Não tem tempo ou espaço. Parece de ontem mas é de futuro que fala,
parece soviético e oriental mas é moderníssimo e quase britânico, parece uma
sucessão de quadros e de canções, uma sequência íntima de segredos, mentiras e
confidências, onde os planos centrados sobre os actores e os ligeiros planos
maiores constroem um magnífico álbum de fotografia.
Filme-ícone que, por vezes, me levou a recordar o dicionário de arquitetura de Michelangelo Antonioni/Monica Vitti ou o compêndio expressionista de John Cassavetes/Gena Rowlands.
«O Longo Adeus» é imperdível e sublime é Zinaida Sharko!
jef,
agosto 2024
«O
Longo Adeus» (Dolgie Provody) de Kira Muratova. Com Zinaida Sharko, Oleg
Vladimirsky, Yuriy Kayurov, Svetlana Kabanova, Lidiya Bazilskaya, Sofya
Belskaya, Andrey Borisenko, Marchella Chebotarenko, Yelena Demchenko, G.
Devyatova, Lidiya Dranovskaya, Oleg Emtsev, Viktor Ilchenko, Evgeniy Kovalenko,
A. Maslakov, Tatyana Mychko, N. Parfyonova, Nikolay Rozhkov, Igor Starkov, Viktor
Strizhov. Argumento: Natalya Ryazantseva. Produção: Gennady Karyuk. Fotografia:
Sven Nykvist. Música: Oleg Karavaychuk. Guarda-Roupa: Natalya Akimova. URSS, 1971,
P/B, 97 min.
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