Entre
«Diário duma Criada de Quarto» de Luis Buñuel (1963) e «Diário de Uma Criada
de Quarto» de Jean Renoir (1946) existem duas Céléstines – Jeanne Moreau e Paulette
Goddard. Duas irreverências absolutas construídas à medida de cada um dos génios
dos dois realizadores. A Céléstine de Jeanne Moreau é obscura, misteriosa,
senhora de si e de uma densa névoa que a faz sobreviver no casarão para a qual foi
contratada, vivendo entre o seu querer e as circunstâncias com que ali se vai deparando.
Enquanto a Céléstine de Paulette Goddard se declara, jovial e revolucionária, destruidora das velhas máximas decadentes, aristocráticas e monárquicas,
ao ver-se, vinda de Paris, a entrar na velha mansão rural do casal Lanlaire que
se fecham a sete chaves, usando a baixela de prata, na noite de 14 de
Julho, enquanto a aldeia inteira celebra a Bastilha na data festiva.
Apesar
do final ter sido alterado no romance de Octave Mirbeau, colocando
Céléstine a partir de comboio com o filho endinheirado Georges Lanlaire (Hurd
Hatfield) após ver desaparecer o velhaco mordomo Joseph (Francis Lederer). Apesar de tudo,
ela quase sorri pois provavelmente não esquece que este contraiu uma doença que se apresenta mais
ou menos em estado terminal.
É
impossível não reparar como Jean Renoir é um sedutor estético, um provocador social,
de uma libido política exacerbada. Recordo «O Crime do Sr. Lange» (1935), «A
Regra do Jogo» (1939) ou «Helena e os Homens» (1956) – o contrato social é
sempre desmascarado, mesmo profundamente adulterado; a multidão movimenta-se
num permanente bailado operárico instigada pela folia ou instigando o poder
vigente, mas sem nunca esquecer que estão a pisar um palco restricto; e as mulheres surgem
maravilhosamente sedutoras, agentes determinadas da revolta, capazes de derrotar
o sexo forte levando a revolução pelo seu lado mais inusitado e estético.
É curioso com o olhar de Paulette Goddard faz verter a permanente dúvida sobre Céléstine, sobre cada um dos seus gestos, dos seus sorrisos, das suas intenções.
Um
filme em ininterrupta sedução.
jef,
agosto 2024
«O
Diário de Uma Criada de Quarto» (The Diary of a Chambermaid) de Jean Renoir. Com
Paulette Goddard, Burgess Meredith, Hurd Hatfield, Francis Lederer, Judith Anderson,
Florence Bates, Iréne Ryan, Reginald Owen, Almira Sessions, Edward Astran, Arthur
Berkeley, Chet Brandenburg, Egon Brecher, Jane Crowley, Sumner Getchell. Argumento:
Jean Renoir e Burgess Meredith segundo o romance de Octave Mirbeau e adaptação
teatral de André Heuzé, André de Lorde e Edouard Norès. Produção Benedict
Bogeaus, Paulette Goddard, Burgess Meredith. Fotografia: Lucien N. Andriot. Música:
Michel Michelet. Guarda-roupa: Barbara Karinska. EUA, 1946, P / B, 87 min.
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