terça-feira, 6 de agosto de 2024

Sobre o filme «Do Fundo do Coração» (Reprise) de Francis Ford Coppola, 1981






















































Este filme é um paradoxo.

Depois de «Apocalipse Now” (1979), aparece «Do Fundo do Coração». Das filmagens colossais na floresta húmida e demente, com interrupções, atrasos, doenças e mosquitos, chega uma comédia nostálgica e musical totalmente construída à sombra de umas Las Vegas de pladur, néons a fingir e fios eléctricos ligados às tomadas dos estúdios da Zoetrope.

Depois do cinema espectáculo realista vem o espectáculo cenográfico e teatralmente dramático. De um deslumbramento para outro deslumbramento.

E para um coleccionador dos discos de Tom Waits, um arrebatado deslumbramento!

Só que o paradoxo é que estas Las Vegas falsas são talvez as mais verdadeiras que podiam ser imaginadas pois no teatro não é permitido fingir. E «Do Fundo do Coração» é teatro. Está lá tudo, real e puro, apesar de "fingido". E num cenário de teatro a verdade é muito simples – é apenas a que ali está e o que sobre ela o espectador, com a sua memória, depois imagina. E em «Do Fundo do Coração» as cenas cruzam-se realmente e em simultâneo por entre cenários reais e telas e holofotes que as fazem duplicar como no teatro isabelino ou nas grande óperas de Verdi, onde os casais cantam em simultâneo formando quartetos unidos pelos amor e pela tragédia. Frannie (Teri Garr) e Hank (Frederic Forrest), no 4 de julho e aniversário do seu casamento, desentendem-se e partem para comemorar a liberdade triste naquele Dia da Independência. Frannie encontra Ray (Raul Julia), um falso músico, e Hank encontra Leila (Nastassja Kinski), uma artista de um pobre circo. E a comédia é triste e os famosos acordes cantados em dueto por Tom Waits e Crystal Gayle aprofundam a noite americana. Os actores não cantam como em qualquer musical americano mas Frannie e Ray dançam sob uma paradisíaca noite junto ao oceano pintado na tela. Leila, funâmbula ou numa gigante taça de Martini, dança para Hank enquanto este coloca as buzinas dos carros da sua oficina a fazerem-lhe a devida vénia. E sobre tudo há o deserto.

Todo o deslumbramento desejava que a história se consolidasse numa comédia com final feliz. Mas não. Como nos mais nostálgicos filmes de Fellini, a alegria, essa sim, surge como falso pano de fundo para uma realidade que se torna mais triste debaixo da luz feérica com que a sociedade impinge a cada minuto os produtos que fabrica. A hipoteca para uma casa própria ou um bilhete duplo para Bora Bora?

Como poderia um filme destes ser um sucesso de bilheteira na América do início dos anos 80. Mais absurdo que paradoxo.

Filmado estrategicamente ao minuto e ao milímetro, tudo aqui é lindo.

«Do Fundo do Coração» é mesmo uma peça única (com o som de um dos meus discos favoritos!), revista em reprise pela minha memória de hoje e pela dimensão dramática do mundo, do teatro e do cinema. 43 anos depois.


jef, agosto 2024

«Do Fundo do Coração» (One from the Heart - Reprise) de Francis Ford Coppola. Com Frederic Forrest, Teri Garr, Raul Julia, Nastassja Kinski, Lainie Kazan, Harry Dean Stanton, Allen Garfield, Jeff Hamlin, Italia Coppola, Carmine Coppola, Edward Blackoff, James Dean, Rebecca De Mornay, Javier Grajeda, Cynthia Kania, Monica Scattini. Argumento: Armyan Bernstein e Francis Ford Coppola segundo a história de Armyan Bernstein. Produção: Iain Canning, Guy Heeley, Joanna Laurie, Emile Sherman. Fotografia: Ronald Víctor García. Música de Tom Waits com Crystal Gayle. Guarda-roupa: Ruth Morley. EUA, 1981, Cores, 107 min.

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