Este filme é um paradoxo.
Depois
de «Apocalipse Now” (1979), aparece «Do Fundo do Coração». Das filmagens
colossais na floresta húmida e demente, com interrupções, atrasos, doenças e mosquitos, chega uma comédia
nostálgica e musical totalmente construída à sombra de umas Las Vegas de pladur,
néons a fingir e fios eléctricos ligados às tomadas dos estúdios da Zoetrope.
Depois
do cinema espectáculo realista vem o espectáculo cenográfico e teatralmente
dramático. De um deslumbramento para outro deslumbramento.
E
para um coleccionador dos discos de Tom Waits, um arrebatado deslumbramento!
Só
que o paradoxo é que estas Las Vegas falsas são talvez as mais verdadeiras que
podiam ser imaginadas pois no teatro não é permitido fingir. E «Do Fundo do
Coração» é teatro. Está lá tudo, real e puro, apesar de "fingido". E num cenário
de teatro a verdade é muito simples – é apenas a que ali está e o que sobre ela o espectador, com
a sua memória, depois imagina. E em «Do Fundo do Coração» as cenas cruzam-se realmente
e em simultâneo por entre cenários reais e telas e holofotes que as fazem duplicar como no
teatro isabelino ou nas grande óperas de Verdi, onde os casais cantam em
simultâneo formando quartetos unidos pelos amor e pela tragédia. Frannie (Teri
Garr) e Hank (Frederic Forrest), no 4 de julho e aniversário do seu casamento,
desentendem-se e partem para comemorar a liberdade triste naquele Dia da
Independência. Frannie encontra Ray (Raul Julia), um falso músico, e Hank
encontra Leila (Nastassja Kinski), uma artista de um pobre circo. E a comédia é
triste e os famosos acordes cantados em dueto por Tom Waits e Crystal Gayle
aprofundam a noite americana. Os actores não cantam como em qualquer musical
americano mas Frannie e Ray dançam sob uma paradisíaca noite junto ao oceano
pintado na tela. Leila, funâmbula ou numa gigante taça de Martini, dança
para Hank enquanto este coloca as buzinas dos carros da sua oficina a fazerem-lhe a
devida vénia. E sobre tudo há o deserto.
Todo
o deslumbramento desejava que a história se consolidasse numa comédia com final feliz. Mas não.
Como nos mais nostálgicos filmes de Fellini, a alegria,
essa sim, surge como falso pano de fundo para uma realidade que se torna mais
triste debaixo da luz feérica com que a sociedade impinge a cada minuto os produtos que fabrica. A hipoteca para uma casa própria ou um bilhete duplo para Bora
Bora?
Como poderia um filme destes ser um sucesso de bilheteira na América do início dos anos 80. Mais absurdo que paradoxo.
Filmado estrategicamente ao minuto e ao milímetro, tudo aqui é lindo.
«Do Fundo do Coração» é mesmo uma peça única (com o som de um dos meus discos favoritos!), revista
em reprise pela minha memória de hoje e pela dimensão dramática do mundo, do
teatro e do cinema. 43 anos depois.
jef,
agosto 2024
«Do
Fundo do Coração» (One from the Heart - Reprise) de Francis Ford Coppola. Com Frederic
Forrest, Teri Garr, Raul Julia, Nastassja Kinski, Lainie Kazan, Harry Dean
Stanton, Allen Garfield, Jeff Hamlin, Italia Coppola, Carmine Coppola, Edward
Blackoff, James Dean, Rebecca De Mornay, Javier Grajeda, Cynthia Kania, Monica
Scattini. Argumento: Armyan Bernstein e Francis Ford Coppola segundo a história
de Armyan Bernstein. Produção: Iain
Canning, Guy Heeley, Joanna Laurie, Emile Sherman. Fotografia: Ronald
Víctor García. Música de Tom Waits com Crystal Gayle. Guarda-roupa: Ruth Morley.
EUA, 1981, Cores, 107 min.
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