É
a história (ou saga pessoal, quase analítica) do médico Eugénio Fontes. Talvez
a queda e ascensão de alguém que se reergue a custo dos remorsos da própria e
furiosa rejeição da primordial miséria familiar.
Uma
espécie de realismo modernista pontuado pelo discurso de Jesus na montanha que
invectiva quem prefere a vaidade e o luxo à justiça e à obrigação a Deus. Realizado
a dois tempos.
O
primeiro tempo, a queda. Dura todo o caminho nocturno de automóvel de Eugénio
Fontes enquanto recorda, por longas analepses, o seu percurso desde a infância
paupérrima até à maturidade e a sua relação com Olívia. Ela é o contraponto afectivo
e moral, apesar de ausente do caminho definitivo traçado por Eugénio. A voz do dono.
No
segundo tempo, a ascensão. Olívia torna-se presente quase conductora
espiritual, apesar de em modo epístolar, e Eugénio renega o luxo, entrega-se à
medicina dos pobres, ao ascetismo, quase se torna agnóstico.
Erico Veríssimo é um exímio contador de histórias e um ilustre fazedor de personagens, máscaras, caricaturas humanas. Já o sabíamos por Clarissa, esse belíssimo romance iniciático. Aqui, o escritor consegue caricaturar (e pôr-nos a odiar) as exibições burguesas e capitalistas do magnate Vicente Sintra ou de Filipe Lobo, ou o fascismo literato de Acélio Castanho. Ao mesmo tempo coloca-nos totalmente a favor do médico sem tostão, o descrente Dr. Seixas, ou do falso (mas verdadeiro médico informativo) Dr. Florismal, ou do benevolente casal alemão Frida e Hans Falk.
E
se, por vezes, provoca no leitor a aversão ao oportunismo e indecisão,
mesmo hipocrisia de Eugénio, Erico Veríssimo liberta-se literariamente das suas
figuras tutelares (Eugénio e Olívia, o mal regenerado e o bem ecuménico) ao descrever os vários casos clínicos a que, a alguns, apelida de Fausto, Pigmalião
ou Hamlet.
Por
aqui tudo passa. Mussolini, Hitler, o deslumbramento perante o nazismo, o
antissemítico primário, a revolta dos anos 30 e a sombra de Getúlio Vargas. Também
a exigência de distribuição equitativa da riqueza, de justiça e paz globais.
Contudo, durante todo o romance perpassa a sombra da resignação perante as
desigualdades. Não há sombra de consciência de classe, de organização ou de
revolta.
Por
isso, parece-me que (ao contrário de «Clarissa») este romance realista tornar-se-á quase anti-neorrealista.
A
seguir, lerei «Saga» (1940).
jef,
março 2024
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