domingo, 31 de agosto de 2025

 









Os Superviventes

 

«Pré-Histórias» é um caso muito sério da música popular portuguesa. E não será apenas por conter um conjunto inesquecível de canções. O álbum que Sérgio Godinho editou em 1972 encerra um fascínio peculiar, emite uma felicidade vindoura, transborda de juventude, solidária e contagiante. Apela à Democracia e à Liberdade.

Mas também não será apenas por isso… «Pré-Histórias» sucede sorridente a um álbum de estreia muito particular «Os Sobreviventes» (1971), que nunca temeu o brilho das duas obras-primas editadas antes, «Cantigas do Maio» de José Afonso e «Mudam-se os Tempos de José Mário Branco.

Mais, Sérgio Godinho afasta-se da circunspecta tradição da balada de Coimbra ou do fado de Lisboa e leva-nos até à jovialidade do rock ou do samba, embrulhando tudo numa teia musical complexa, de aparência simples e popular.

Ou seja, em vez de cantar o fim de uma ditadura, ele prefere anunciar o canto de uma nova ordem, alegre e democrática. Assim é o começo com o estranho “Barnabé”, que é diferente de todos os demais, e o final feliz com a chegada de “O Homem dos 7 Instrumentos”. Mas não se fica por aí, rejeita a poesia erudita e distante, cita um dos grandes poetas da palavra insólita – Alexandre O’Neill – e canta “o medo de ter medo” e o Porto surrealista. Mais, aqui o amor revela-se destemido, lúdico e sensual, “A Noite Passada”, mas também ferido, desesperado e lutador, “Aprendi a Amar”.

Um disco clarividente, onde a juventude, a velhice e o amor à liberdade de viver misturam-se num caos cheio de luminosidade e esperança. Se estas canções resultaram em «Pré-Histórias» foi, sem dúvida, por serem tão verídicas e fundamentais quanto a alegria e a razão que levaram à sua criação.

Um álbum para uma colecção muito restricta.

p.s. lembro-me quando os meus tios me deram o álbum acabado de sair, pelos meus anos, 14 diga-se, e que o ouvi ininterruptamente, como um disco alegríssimo para crianças que suspeitavam que iriam crescer em liberdade!


«Pré-Histórias» de Sérgio Godinho, Guilda da Música / Sasseti, 1972

Março de 1998

jef

 

sábado, 30 de agosto de 2025

Sobre o disco «Meus Caros Amigos» de Chico Buarque, Philips, 1978








Meu Caro Chico

Há discos que o tempo e o intrínseco valor musical fazem saltar das prateleiras carimbadas por épocas, estilos e rótulos fáceis, entrando nos dignos escaparates da  minha música clássica. Há também canções que se ouvem numa época, numa certa idade, que as torna geneticamente nossas, transformando os seus direitos em património cultural sem região ou relógio. Verdi, Gershwin, Mozart, José Afonso, Monteverdi, Cole Porter, Jacques Brel, Bach, Tom Waits… A esta lista, felizmente, poderão juntar-se muitos outros nomes mas ficará sempre incompleta enquanto não incluir o do inventor de canções Chico Buarque de Holanda. Entre obras inesquecíveis, encontramos um disco único que consegue a proeza de juntar dez dessas canções, unidas pela poética abstractamente concreta, os arranjos sinfónicos, o fundamento dos coros e, porque não, o acaso dos meus ouvidos. Afinal, «Meus Caros Amigos» é um disco absolutamente meu! Lá dentro, temos a profundidade de “O Que Será (À Flor da Terra)”, o hino anti-machista “Mulheres de Atenas”, o acto de regeneração afectiva de “Olhos nos Olhos” e “Você Vai Me Seguir», a urgência social e ecológica de “Vai Trabalhar Vagabundo” e “Passaredo”, a ternura quase de embalar “A Noiva da Cidade”, o eterno retorno e a saudade de “Basta um Dia” e “Meu Caro Amigo”. Escutar de novo, agora, este disco é reencontrar lá dentro a melhor memória de mim mesmo e, ao mesmo tempo, reviver o prazer de ouvir cantar (e com que paixão!) em português. «Meus Caros Amigos» é um dos poucos discos a levar para uma certa Berlenga, se deserta, minúscula e longínqua.

«Meus Caros Amigos» de Chico Buarque, Philips, 1978

13 de Dezembro de 1993

jef

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Sobre o filme «O Ouro de Nápoles» de Vittorio De Sica, 1954



 










































Nunca entendi muito bem o que significa o cinema italiano neo-realista. Por ignorância minha e por nunca me ter debruçado afincadamente sobre as teorias sobre ele elaboradas. Os meus pais eram devotos do cinema (e deste em particular) e com eles aprendi a também ser devoto de «Ladrões de Bicicletas (Vittorio De Sica, 1948) e «A Terra Treme» (Luchino Visconti, 1948), expoentes deste cinema. Com estes filmes (estreados no mesmo ano), percebi a carga política socio-económica de uma Europa a sair de uma grande guerra, a miséria de quem trabalhava sem proventos e a necessidade de exaltar a revolta dos explorados para que uma ordem mais justa surgisse. Nestes filmes tudo batia certo, a estética dos planos, o desespero no interior da comoção, o actores-não actores a representarem o dédalo injusto de uma sociedade que lhes negava a vida.

Contudo, ao deparar-me com outras maravilhas do cinema italiano, como por exemplo os seis episódios que integram «O Ouro de Nápoles», saio com o deleite do expressionismo das personagens, com a comicidade teatral de algumas das figuras e, mesmo naqueles dois trechos definitivamente trágicos, “Funeralino” e “Teresa”, a ideia que me fica da mãe órfã do filho, protagonizado por Teresa De Vita, e a esposa por consumar, encarnada por Silvana Mangano, a ideia que retenho é de um hiperactivo expressionismo interior, longe da assunção socio-política que me haviam proposto inicialmente. Talvez mais próximo de um existencialismo Dreyer, Bresson ou Bergman. Mas talvez seja eu que esteja a confundir tudo, a tudo complicar.

É evidente que a histriónica e emocional Nápoles, da alegria e dos desvalidos, dos gritos e do povo na rua, está lá toda. E os ricos são sempre farsantes ou mentirosos e os pobres, apesar de também por vezes mentirosos, são sempre olhados com um carinho descomunal – Totò (Don Saverio) contra Pasquale Cennamo (Don Carmine) em “Il Guappo”. Pierino Bilancioni (o pequeno Gennarino) contra Vittorio De Sica (Il conte Prospero B.) em “I Giocatori”. Eduardo De Filippo (Don Ersilio) contra Gianni Crosio (Alfonso Maria di Sant'Agata dei Fornai) em “Il professore”.

Ao ver estes episódios napolitanos recordo outro filme sobre a mesma cidade «As Mãos Sobre a Cidade» (Francesco Rosi. 1963). Não será este último, esteticamente também irrepreensível, quase uma década mais tarde, muito mais político, contendo sem apelo ou agrave uma crítica profunda a uma sociedade que deixa os mais pobres para trás, um filme muito mais “neo-realista”?

Enfim, permanecendo sem saber lá muito bem como catalogar o cinema italiano, continuo a dever-lhe extrema devoção.

 

jef, agosto 2025

«O Ouro de Nápoles» (L'oro di Napoli) de Vittorio De Sica. Com Totò, Lianella Carell, Sophia Loren, Paolo Stoppa, Pasquale Cennamo, Agostino Salvietti, Giacomo Furia, Alberto Farnese, Tecla Scarano, Pasquale Tartaro, Teresa De Vita, Vittorio De Sica, Pierino Bilancioni, Lars Borgström, Mario Passante, Silvana Mangano, Erno Crisa, Ubaldo Maestri, Eduardo De Filippo, Tina Pica, Nino Imparato, Gianni Crosio. Argumento: Cesare Zavattini, Vittorio De Sica, Giuseppe Marotta. Produção: Dino de Laurentiis, Carlo Ponti. Fotografia: Carlo Montuori. Música: Alessandro Cicognini. Itália, 1954, P/B, 131 min.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

O Túlipa Negra. «Black Rider» de Tom Waits. Island, 1993



 






O mês de Dezembro tem destas coisas, vem sempre no final do ano, traz invariavelmente o Pai Natal à perna, mas também oferece-nos quase sempre as melhores surpresas musicais. E para que este ano não fugisse à regra, o Menino Jesus lá acabou por nos pôr no sapatinho o disco mais fabuloso de 1993: «The Black Rider» - o álbum de capa branca de Tom Waits. Depois de nos ter presenteado, no ano passado, com um dos discos mais negros da sua carreira, «Bone Machine», mergulha ele de cabeça no seu bem amado teatro. Junta-se a Robert Wilson (o encenador) e a William Burroughs (o escritor) e estreiam em Hamburgo, em Abril de 1990, «The Black Rider», uma peça baseada numa antiga lenda da Alemanha, atafulhada de amores contrariados, pactos com o diabo, caçadores, belas encantadas e morte. E é pelo meio de tudo isto que Tom Waits consegue fazer o impossível: reestrutura as peças musicais, altera-lhes a sequência, introduz os sons mais irrequietos provenientes de um grande número de instrumentos musicais, impõe a força da sua voz destroçada, grava de forma íntima e expressionista para parecer que tudo se passa entre o palco do cabaré e a arena do circo e, por fim, envolve a sua obra perversa, futurista, num dos mais bizarros e interessantes grafismos (Robert Wilson), numa dos mais conceptuais direcção e arranjos musicais (Greg Cohen). Tom Waits põe à nossa disposição um enorme álbum onde apenas falta o suor dos actores, o calor dos holofotes e o pó dos bastidores. A seguir de «The Black Rider» só resta mesmo perguntar: o que é que o futuro de Tom Waits nos andará agora a preparar?

«The Black Rider» de Tom Waits, Island, 1993


13 de Dezembro de 1993

jef

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Para Além do Bem e do Mal
























































Para Além do Bem e do Mal

O filme mal acaba, as luzes da sala mal acendem e há já quem diga, ainda de casaco na mão, que «Tão Longe, Tão Perto!» não se compara com As Asas do Desejo (1987) e que Wim Wenders devia estar com juízo a arder quando se meteu a fazer continuações à americana e, pior, resolveu explorar o humor comum da comédia policial. Se esta opinião pode fazer algum sentido para quem se habituou a apreciar o cinema solitário e íntimo de Wim Wenders, ela revela-se, por outro lado, perfeitamente ingrata e precipitada.

O cinema alemão de Wim Wenders (e de todos os artistas que sempre o rodearam, a começar por Peter Handke) suporta sobre os ombros a angústia de um passado nazi da sua pátria (e não deles próprios) e a terrível herança de cidades, estradas e vidas separadas e sem destino: Alice nas Cidades (1973), Movimento em Falso (1975) e Ao Correr do Tempo (1976) são exemplos definitivos. Mas Wim Wenders não pretende deixar a História a meio e, anos mais tarde, resolve filmar o centro da ferida, povoando o céu que cobre Berlim de anjos irremediavelmente atraídos pelas almas torturadas, mas coloridas, dos habitantes da cidade dos muros e dos conflitos. Com As Asas do Desejo inventa um novo expressionismo para o cinema, humano e universal, e quebra as fronteiras do tempo, da cultura e da realidade. Em Até ao Fim do Mundo (1990) amplia esta ideia chegando aos limites do sonho, através da multiplicação das paisagens, dos actores e de uma banda sonora caleidoscópica. Mas a queda do muro de Berlim obriga o realizador a fechar a Trilogia do Mundo, fazendo-o voltar à cidade que, apesar de já não ter muro, continua sitiada.

«Tão Longe, Tão Perto!» é uma parábola terna e humorística sobre o Universo e o Tempo por nós criados e dos quais somos prisioneiros, protagonizada por anjos que sonham estar perto dos homens e por homens que pensam que os anjos são seres longínquos e inatingíveis. «Tão Longe, Tão Perto!» é, para além do bem e do mal, um filme optimista que acaba por se rir do próprio cinema, de si próprio, quando, na belíssima cena final, reúne no convés da barcaça Alekhan, em jeito de retrato de família, toda a sorridente legião de figuras angelicais, fazendo recordar a mestria de Jean Vigo em L’Atalante (1934).

 

24 de janeiro de 1994

jef

«Tão Longe, Tão Perto!» (In Weiter Ferne, So Nah!)  de Wim Wenders. Com Otto Sander, Peter Falk, Horst Buchholz, Mikhail Gorbachev, Nastassja Kinski, Heinz Rühmann, Bruno Ganz, Solveig Dommartin, Rüdiger Vogler, Lou Reed, Willem Dafoe, Monika Hansen, Günter Meisner, Ronald Nitschke, Hanns Zischler, Martin Olbertz, Aline Krajewski, Tilmann Vierzig, Antonia Westphal, Ingo Schmitz. Argumento: Wim Wenders, Ulrich Zieger, Richard Reitinger. Produção: Wim Wenders e Ulrich Felsberg. Fotografia: Jürgen Jürges. Música: Laurent Petitgand, Graeme Revell. Guarda-roupa: Esther Walz. Alemanha, 1993, Cores, 146 min.

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Sobre o disco «Sounds of the Satellites» de Laika, 1997, Too Pure



 















O título do segundo álbum da banda inglesa remete-nos para uma espécie de confissão escondida no fundo cósmico da décima segunda e última faixa. Aguardemos em silêncio por ela. Entre electricidade estática e os sinais orgânicos de um animal encarcerado e sobreaquecido, a voz feminina vai expondo como a comunicação foi sendo feita com a pobre cadela enviada para testes siderais dentro do satélite soviético Sputnik 2, em finais de 1957. Não terá sido o único e primeiro cão a ser sacrificado, nem o último animal a ser lançado para a morte no éter astronómico.

Isto será apenas o fim condoído (ou o início inóspito) deste disco composto por Margaret Fiedler e Guy Fixsen (voz, sampler, guitarra, baixo, Minimoog sintetizador, percussão, trompete, programação e mistura). Depois vem Louise Elliott (flauta), Lou Ciccotelli (percussão), Rob Ellis (tambores, piano preparado, percussão, coro) e Alonso Mendoza (vibrafone).

Aliás como todo o cosmos real também este disco tem uma audível propensão onírica. Os sonhos são coisas etéreas que, caso não as agarremos com unhas e dentes, vão cair sistematicamente em saco roto. É como se a electrónica apresentasse uma dimensão romântica já com saudades de «Blue Lines» (Massive Attack, 1991) ou «Maxinquaye» (Tricky, 1995). Apenas, aqui, a poética integra uma suave linha circular quase a tocar o poema sinfónico, tal a finíssima minúcia da engenharia aplicada. Até à faixa número seis – “Bedbugs”.

A partir daí, o trip-hop vai abraçando o drum’n’bass, o ritmo acelera e parece querer assumir um duplo amor sentido também pelo groove do funk ou, depois, por aquele muito mais antigo jazz rítmico de fusão (de Hermeto Pascoal ou Weather Report). O ritmo acelera, a voz de Margaret Fiedler oferece-se à palavra quase dita, delirantemente poética. A flauta e o vibrafone vai trazendo os arcos melódicos ao meio mais terreno. “Shut Off / Curl Up”, faixa dez. Desliguemo-nos do mundo, voltemos à posição fetal.

Enfim, preparemo-nos para regressar à Terra, “Spooky Rhodes”. Há coisas que apesar de tão simples permanecem sem explicação. "Dirty Feet".

Melhor assim. Apaguemos a luz e que a alma de Laika nos proteja a partir do Paraíso dos Cães.


jef

agosto 2025

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Sobre o filme «Senhora Ogin» de Kinuyo Tanaka, 1962

































Existe no filme, o derradeiro realizado por Kinuyo Tanaka, qualquer coisa de romântico, de melodrama verdiano. Qualquer coisa de insubstituível. Talvez seja a cor inflexível do majestoso guarda-roupa, talvez o azul que vai debruando todo o filme, a cor do jardim ou da paisagem como folha de cenário ou a luz de palco que se vai acendendo e abrindo com apenas o toque de uma vela. Talvez seja o silêncio de Ogin (Ineko Arima), irremediavelmente entregue a um destino que nunca se cumprirá, manietada pela crença cristã do seu amante, Ukon (Tatsuya Nakadai), amigo de infância, que não abdicará da sua devoção, prescindirá do amor recíproca e partirá para o exílio quando a lei anti-cristianismo chega ao Japão pelos finais do século XVI. Ogin seguirá até ao final rodeada pelo amor da sua famíla adoptiva, também do seu pai adoptivo Rikyu (Nakamura Ganjiro II), um respeitado dignitário mestre da cerimónia do chá. Mas nem esse absoluto carinho a salvará. Apenas levará consigo a memória consumada de uma noite que passa com Ukon, num casebre durante uma noite de chuva, quando têm ambos de fugir de uma armadilha criada pelo marido de Ogin, Shintaro (Hisaya Ito) e o comandante militar Ishida que deseja afastar definitivamente Ukon do campo de batalha.

Toda a resistência, perseverança e dignidade femininas estão contidas na cena (quase pasoliniana) quando Ogin e a sua criada vêem passar uma mulher que irá ser morta por desobediência ao senhor regional Hidetsugu.

Toda a arte do melodrama contida no silêncio dos gestos, na devoção dos olhares, na interioridade das emoções. Na quietude luminosa do jardim.


jef, agosto 2025

«Senhora Ogin» (Ogin-sama / Love Under the Crucifix) de Kinuyo Tanaka. Com Ineko Arima, Tatsuya Nakadai, Mieko Takamine, Masakazu Tamura, Minoru Chiaki, Ryuuji Kita, Kuniko Miyake, Tatsuo Endo, Yoshi Kato, Ryosuke Kagawa, Manami Fuji, Yumeji Tsukioka, Koji Nanbara, Chishu Ryu, Nakamura Ganjiro II, Osamu Takizawa, Keiko Kishi, Hisaya Ito. Argumento: Masashige Narusawa segundo o romace de Toko Kon. Produção: Sennosuke Tsukimori, Shigeru Wakatsuki. Fotografia: Yoshio Miyajima. Música: Hikaru Hayashi. Japão, 1962, cores, 98 min.

sábado, 23 de agosto de 2025

Sobre o disco «Return to the Moon» de EL VY, 2015, 4AD










Por que razão que gosto particularmente da música que já ouvi?

EL VY é um grupo que lançou apenas um disco mas ainda, eventualmente, poderá editar mais música. Não se encontra fechado nesse futuro necessariamente inverto. É constituído por Brent Knopf, o engenheiro e produtor do álbum. Também assina as onze canções com Matt Berninger. Contudo, tudo anda longe dos nervosos refrões repetidos e suados dos The National ou das canções interiores e sub-reptícias de Matt Berninger, ao expor-se sozinho. 

Aqui, no profundo, resiste uma memória histórica do mais sedimentado pop-rock.

A percussão impõe uma velha batida dançável nas canções simultaneamente políticas e amorosamente etéreas: «Return to the Moon (Political Song for Didi Bloome to Sing, with Crescendo)» ou «I’m the Man to Be». Lembro-me dos R.E.M. ou dos The B-52’s. Livre e sincero. Fantasioso, divertido e quase infantil.

Baladas em ritmo de marcha, «Paul is Alive», «Need a Friend», «Sleepin’ Light». Anos 90, século passado. Ainda mais antigo, o swing, «Silent Ivy Hotel». A folk sem artifícios mas com arcos sinfónicos e corais onde a guitarra aparece para electrificar a cadência, à antiga, «No Time to Crank the Sun», «It’s a Game». Até a guitarra ficar a marcar definitivamente o ritmo, «Sad Case», «Happiness, Missouri».

Finalmente, «Careless» lembra como a pop pode oferecer ‘um Cadillac a ser conduzido numa noite através de um possível amor em agonia, de um improvável reencontro com o lugar do morto’.

Tudo tão simples, tão livre do tempo, tão melancolicamente alegre.


jef, julho 2025

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Audrey Hepburn. Estrelas no Céu.











Estrelas do Céu

Quem teve ocasião de contemplar o firmamento na noite de 20 de Janeiro (de 1993), reparou por certo como ele estava claro, sem sombra de nuvens e invulgarmente brilhante. A razão deste fenómeno é simples, mas triste: acabava de desaparecer da face da Terra uma das mais luminosas estrelas do cinema mundial – Audrey Hepburn.

Audrey Hepburn foi uma mulher muito especial, daquelas cuja graciosidade e coerência, nos fará sempre tirar o chapéu e, muito humanamente, respeitar. Com o eterno ar de menina educada e frágil, mostrou um perfil de elegância e charme incomparável e um olhar de uma ternura sedutora, a que era (e ainda é) muito difícil resistir. Poucas foram as actrizes que ofereceram ao ecrã e aos seus fãs uma imagem tão bela e, ao mesmo tempo, tão inteligente.

Embora já conhecesse os palcos de comédia britânica há alguns anos, foi em 1952, com 23 anos, que chegou ao êxito da Broadway com a peça «Gigi», e à fama de Hollywood com o filme de William Wyler «Férias em Roma» (1953). Audrey Hepburn entrava como um cometa no estrelato mundial. A partir dessa altura jamais deixou de ser dirigida pelos nomes maiores do cinema americano – Billy Wilder, King Vidor, Stanley Donen, John Huston ou Blake Edwards –, e de estar rodeada de outras tantas lendas de Hollywood – Humphrey Bogart, Henry Fonda, Gregory Peck, Cary Grant, Gary Cooper ou Fred Astaire.

Em todo o mundo, o público rendeu-se ao encanto vagamente envergonhado das suas personagens, quer elas fossem Natasha (de «Guerra e Paz»), Sabrina (cujos sapatos fizeram moda) ou Cinderela (em «Funny Face»). De entre todas elas, Eliza Doolittle é aquela que perdura na memória de maior número de cinéfilos. «My Fair Lady» estreia em 1964, envolto em esplendor mas, também, em polémica. George Cukor, o mestre-realizador, impõe Audrey contra a opinião da produtora, cuja preferência ia para Julie Andrews que, nos palcos da Broadway, tinha sido Eliza durante anos a fio e com enorme êxito.

Na origem deste musical está a peça Pigmalião de Bernard Shaw, em que o artista se apaixona pela perfeição da sua obra-prima. Rex Harrison (Henry Higgins), gentleman estudioso da língua inglesa, para quem a palavra “mulher” é sinónimo de “estorvo”, aposta que uma jovem sem instrução, vendedeira de flores, irá ainda um dia às corridas de cavalos de Ascot sem ser notada. Para isso, bastaria ensiná-la a falar correctamente o inglês. Claro está que Audrey Hepburn o consegue e, no fim, prova ser uma verdadeira fair lady. E se Mr. Higgins, obviamente, se apaixona pela sua obra-prima, Cukor não o deve ter ficado menos, caso contrário como se explicaria o modo como a filmou, rodeando-a de tão magníficos actores secundários e de tão fabuloso (e discutido e caríssimo) guarda-roupa.

Pois é, enquanto paira a tristeza da sua morte, vai rodando no gira-disco a encantadora banda-sonora (Alan Jay Lerner e Frederick Loewe) onde, apesar de algumas canções serem dobradas por Marni Nixon (outra polémica do filme), lá aparece para nosso deleite, a sua voz frágil e inconfundível. Fica, por fim, a alegria de podermos rever os filmes dessa princesa, de grandes olhos e pescoço esguio, e de a recordar como o anjo que salva anjos, na sua derradeira e extraordinária aparição no filme de Steven Spielberg, «Always» (1989), ou na ajuda que prestou, quase até ao fim, às missões da UNICEF por terras de África.


p.s. e desculpando-me pela quantidade astronómica de adjectivos e nomes próprios deste texto, a que não me quis furtar, pergunto em que disco encontrarei a canção «Moon River» (Johnny Mercer / Henry Mancini), tema de outro clássico da nossa estrela no céu, «Breakfast at Tiffany's» (1961)?

 

16 de março de 1993


jef

domingo, 10 de agosto de 2025

Sobre o livro «Campo Pequeno» de João Pedro Vala, Quetzal / Língua Comum, 2024



 







Este é um livro inútil, talvez mesmo desnecessário, porque profundamente moralista. Talvez presunção.

Peço desculpa. Eu não gosto nada de dizer mal de uma obra, primeiro, porque dá muito trabalho a escrever, a rever, a editar e, no final, os leitores-compradores sempre escasseiam. Segundo, porque o meu tempo é limitado e tenho uma pilha de clássicos a exigir a minha atenção.

Acontece estar eu a viver num mundo de uma violência atroz, sem sentido, abjecta, quase abstracta para o modo em que fui educado e em que pretenderia continuar a existir. Por isso, quando me surge um livro onde um super-narrador que convive com os personagens (mas por pudor não se dá a conhecer), por achar que todos os seus amigos: a Laura, o Heitor, o Gabriel, a Mafalda, o Hugo, as respectivas famílias, e todos os outros que vão aparecendo sem sentido narrativo (desculpando-se o narrador,  porque apenas assim, lhe apeteceu…), todos os personagens, repito, são na prespectiva do narrador violentamente irresponsáveis, não assumidos, mal resolvidos, gostam de apanhar pancada, talvez por incompreensão ou apenas por serem néscios ou mesmo burros. Salve-se o pequeno Tomé que por ser bebé talvez ainda não se tenha apercebido que nasceu com o pecado original no coração…

(Aliás, fiquei com a mesma sensação de inutilidade da violência, o que me deixa a pensar que tal sempre revela uma hiper-moralidade por parte do criador, quando vi o filme «Parasitas» (Bong Joon Ho, 2019). Tanta violência e má disposição sem sentido, apenas as consigo admitir infelizmente na realidade. A arte tem outro sentido, acho, para mim. Sobre o assunto, e sem pensar muito, lembro-me de obras contrárias como «Crime e Castigo» (Fiódor Dostoiévski, 1866), «Estilhaços» (Bret Easton Ellis, 2021), «Assim para Nós Haja Perdão» (A.M. Homes, 2012) ou, mais recentemente, o filme «Sirât» (Oliver Laxe, 2025), nos quais a violência e o incómodo surgem como pathos narrativo para nos levar apenas a uma conclusão – se assim o desejarmos – no nosso mais profundo sentimento.

Por outro lado, o autor enche-se de brio e convoca alternadamente para a sua escrita tiradas jocosas sobre personagens populares (que saudades de «O Que Diz Molero», Dinis Machado 1977) e rajadas filosóficas à Ortega y Gasset sobre a estúpida inconsequência de cada uma daquelas personagens.

(E já agora, o que faz ali no meio, a morte de uma freira ocasional, a aparição de um Genghis Khan que se besunta de perdiz pútrida antes de ir para a caça, de um qualquer jogador de futebol de nome Toninho Mamas, de um encontro libidinoso numa carpintaria entre César e Delfim?)

Enfim, desejo sinceramente longa vida, alegre e com saúde, para o autor, João Pedro Vala, e vou avançar para um próximo livro.


jef, agosto 2025

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Sobre o filme «Umberto D.» de Vittorio De Sica, 1952



 
























O crítico francês André Bazin (1918-1958) apaixona-se por «Umberto D.».

Como anteriormente se apaixonara por «Ladrões de Bicicletas» (1948), esse expoente do neo-realismo teatral ou, depois pelo realismo-fantasioso de «O Milagre de Milão» (1951). Mas é com este que Bazin aproxima De Sica da centelha poética de Charlot de Chaplin. Sublinhando que o cinema de De Sica (e do argumento de Cesare Zavattini) é só possível porque está condicionado a um acto de amor.

«Não hesitarei em afirmar que o cinema raramente foi tão longe na tomada de consciência do facto de se ser homem. (E também, afinal, do facto de se ser cão).

Como é possível não nos apaixonarmos também por esse deambular tão concreto, tão realista e lento, tão importante como desnecessário, de Maria (Maria Pia Casilio), secretamente grávida, desde que se levanta até aquecer a água, moer o café, empurrar a porta com a ponta do pé ou afogar o carreiro de formigas na parede. Tudo lento e desnecessário, imprescindível para comprrendermos como é feito o acto de viver . Tal como as cenas de Umberto D a perguntar a Maria por um termómetro pois está a snetir-se. (O espectador fica atento ao percurso do termómetro). Afinal, Umberto D(omenico Ferrari). Porém, quando alguém se aposenta da função pública e fica sem dinheiro para pagar o quarto a identidade parece deixar de importar. Um quarto alugado por bom e esforçado dinheiro a Antonia Belloni, a senhoria (Lina Gennari), pelo qual vendeu o seu relógio de bolso. Um quarto que dá guarida ao seu melhor amigo, um cãozinho, aparentado a um “jack terrier”, de seu nome Flike. É Flike que fará toda a ligação dramática da narrativa recusando o abandono, recusando a entrega ao destino funesto, recusando o suicídio, oferecendo-se à vida.

Existe no filme qualquer coisa de burlesco, de sorriso lacrimoso, de combate ao final que a sociedade parece outorgar às personagens, também de revolta perante o que nada parece estar para chegar. Um filme onde o tempo durante o qual contemplamos (sem tempo) as personagens é o dogma realista de como podemos observar a obstinada sobrevivência de Umberto D, de Maria e do Flike. Reencontrar-se-ão, reencontrarão o sentido da vida?

Não o sabemos. Apenas ficamos a conhecer como o cinema pode ser um absoluto e indefectível acto de amor. A sua própria definição.


jef, agosto 2025

«Umberto D.» de Vittorio De Sica. Com Carlo Battisti, Maria Pia Casilio, Lina Gennari, Ileana Simova, Elena Rea, Memmo Carotenuto, Alberto Albani Barbieri, Pasquale Campagnola, Riccardo Ferri, Lamberto Maggiorani, De Silva. Argumento: Cesare Zavattini. Produção: Giuseppe Amato, Vittorio De Sica, Angelo Rizzoli. Fotografia: G.R. Aldo. Música: Alessandro Cicognini. Itália, 1952, P/B, 89 min.