quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Sobre o filme «Lavagante» de Mário Barroso, 2025





















Ora aqui está o filme certo, na hora certa. 

A história vem de José Cardoso Pires (editada em 2008), que este ano comemora os 100 anos do seu nascimento. O argumento é uma das últimas ideias de António-Pedro Vasconcelos para o cinema. A fotografia do filme vem do próprio realizador, Mário Barroso. Um mestre fotógrafo, sem a mínima dúvida. Também um filme que recorda que o fascismo não foi flor que se cheire e muitos sofreram e morreram para nos dar hoje um regime democrático que permite a fascistas candidatarem-se a eleições livres, tecendo loas à repressão das ideias próprias. Nesse sentido, este filme devia ser levado a escolas, cineclubes e sociedades recreativas por todo este sacrossanto Portugal.

O filme é uma terna devoção dentro da resistência anti-fascista, dentro da opressão de um regime violento. Será que todo o sacrifício possui justificação, tanto na política como no amor? Por que pairam sobre o filme as áreas de «Tosca» de Puccini? Uma ópera estreada em período de revolução política em Itália e que conta a história de alguém que se entrega ao carrasco para salvar o amado mas acaba por ser enganada também por aquele.

Um ambiente recriado pela magnífica fotografia de Mário Barroso que dá a densidade certa a ambientes e personagens, à luz no preto e branco, à névoa sobre a serra da Arrábida, ao nevoeiro das salas enfumaradas da redacção dos jornais e de cafés. Transmite-lhes o necessário toque claustrofóbico e luminoso a uma verdade encenada que, ao mesmo tempo, é realisticamente dramática. A ópera, de novo.

A actriz Júlia Palha (Cecília) ilumina o ecrã com uma deslumbrante fotogenia ‘Cahiers du Cinéma’, muito bem secundada pela rivalidade que Sara (Leonor Alecrim) reprime pelo médico Daniel (Francisco Froes). A completar o quarteto está o jornalista resistente José (Nuno Lopes) que, como a força da razão, faz um coro solo a proclamar a verdade sobre as emoções. Por fim, o carrasco, esse lavagante, segundo a metáfora, que faz engordar o safio para o aprisionar e, depois, melhor lhe saborear a carne – o inspector da PIDE Salaviza (Diogo Infante).

Um filme a não perder, por todas as razões e mais alguma.


jef, outubro 2025

«Lavagante» de Mário Barroso. Com Francisco Froes, Nuno Lopes, Júlia Palha, Leonor Alecrim, Diogo Infante, Rui Morisson. Argumento: António-Pedro Vasconcelos livremente adaptado da obra homónima de José Cardoso Pires. Produção: Paulo Branco / Leopardo Filmes. Fotografia: Mário Barroso. Música: Mário Laginha. Decoração: Paula Szabo. Guarda-roupa: Lucha d'Orey. Portugal, 2025, P/B, 92 min.



terça-feira, 14 de outubro de 2025

Sobre o livro «A Vida Modo de Usar» de Georges Perec, Editorial Presença, 1989 (1969-1978). Tradução de Pedro Tamen.



 







Um labirinto consignado no interior de um mundo infinito. Um mundo infinito consentido dentro de um labirinto desvendado. Através de uma tradução árdua e magnífica de Pedro Tamen, eis o romance que George Perec edificou durante nove anos. E como ele imaginou, a fachada de um prédio a ser removida e todas as histórias ali contidas a poderem, finalmente, ser contadas em simultâneo.

Referimo-nos ao número 11 da imaginária rua de Simon-Crubellier situada no 17.º bairro de Paris. Tem mais de oito pisos, incluindo caves, corredores, escadas, esconsos, caixa de elevador, lojas e mansardas. 99 capítulos divididos por 6 partes (e um epílogo), com um mapa anexo para localizar os novos e os velhos inquilinos, um substancial índice remissivo de 50 páginas para situar as referências citadas por mais casuísticas que pareçam ao leitor desatento (e é preciso muita atenção!), uma tabela cronológica 1833-1975, um índice da maior parte das histórias (mais de 100) contadas nas perto de 450 densas páginas deste exaustivo Compêndio de História Comportamental de uma Cidade e do Mundo que a envolve.

Todo o livro é descrito como se um fotógrafo forense analisasse o local dos acontecimentos onde as personagens parecem ficar paradas no tempo, cristalizadas como num álbum de fotografia. Inicialmente, ali tudo tem de ser descrito ao mais ínfimo pormenor, pois é no pormenor que pode esconder-se a solução. A cor do sapato, o estado da manta, a história retratada numa pintura. Depois, todas as personagens começam a mover-se e a sua história vai sendo contada por episódios, desde o nascimento do edifício em 1833 até a um certo Verão que quase o faz tornar-se num deserto. Estamos no dia vinte e três de Junho de mil novecentos e setenta e cinco e as oito horas da noite aproximam-se.

E por mais personagens que se multiplicam ao longo daquele frontispício, existe uma certa competição velada, um negócio fechado, um jogo escondido, infinito por irrealizável. Numa espécie de centro descentrado, está um britânico, riquíssimo e fleumático, Bartlebooth que resolve pintar 500 aguarelas junto ao mar. Para isso, tem de contratar Valène durante dez anos para o ensinar a pintar. Como seriam aquelas executadas nas mais diversas geografias, viajou à volta do mundo durante vinte anos com o seu mordomo Smautf. Essas pinturas marinhas seriam depois transformadas em 500 puzzles. Para isso, contratou Gaspard Winckler. Os prazos deviam ser cumpridos à risca e as 750 peças de cada uma das 500 caixas deviam ser montadas com rigor, caso a caso, em cada duas semanas. Contudo…

Ler este livro é como encontrar novamente o gozo na inesgotável descrição dos romances oitocentistas, um humor franco na caracterização das personagens que começam invariavelmente a ser contadas pelo que trazem vestido ou pelos imensos objectos que as rodeiam.

Ler este livro é reencontrar Júlio Verne, se este estivesse sentado à mesa do café com Guy de Maupassant, Tchéchov, Eça de Queirós ou Mário de Carvalho. Caso estes lessem em conjunto os livros de lendas e narrativas das «Mil e Uma Noites», de «Se Um Viajante Numa Noite de Inverno» de Italo Calvino ou as peripécias encerradas no «Manuscrito Encontrado em Saragoça» de Jan Potocki. Já para não falar na «Odisseia» de Homero ou nas «Metamorfoses» de Ovídio…

Sem dúvida, o prazer de ler mil histórias enquanto vão passando na parede branca as imagens dos cenários onde se situa a verdadeira origem do nosso universo.

Um prazer inesgotável que pode ser lido de trás para a frente ou em qualquer um dos sentidos idealizados!


jef, outubro 2025

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Sobre a peça «O Senhor Paul», Teatro Aberto 2025



 

























Há anos que o Senhor Paul vive no seu sofá, bebendo o seu chá, devorando o seu esparguete, quantas vezes frio por não o aquecer na placa eléctrica que se encontra por cima do piano mecânico. O Senhor Paul e a sua irmã, Luise, amante de Ópera, vivem nas traseiras do prédio onde outrora habitavam e de onde foram expulsos pelo velho proprietário, voz de falsete, avô do actual dono, Helm, que agora conseguiu financiador para transformar o espaço, uma antiga fábrica de sabão, numa moderna lavandaria. Para isso, Helm precisa de uma simples assinatura do Senhor Paul.

Só que o Senhor Paul vive bem no seu sofá, no seu roupão de seda e com as suas pantufas, convivendo em alegre, quase pueril, quase licenciosa amizade com uma quase criança, a vizinha Anita, que junto dele se refugia e se diverte. Nada mais lhe interessa. Nem a propriedade, nem o futuro da cidade, da economia e do resto do mundo. E como o Senhor Paul a tudo abdicou, nada, deste modo, lhe pode ser retirado.

O Senhor Paul, na sua atitude de obsessiva e sistemática rejeição torna-se um novo “Bartleby”, a sintomática enigmática personagem criada por Melville que também a tudo dizia com convicta benevolência “Preferia não o fazer!” (I would prefer not to, na tradução de Gil de Carvalho para a Assírio & Alvim).

Só que Tankred Dorst escreveu esta peça em 1993, numa Alemanha reconstruída e em busca de uma nova identidade social e económica, talvez furturista, certamente também injusta. Hoje podemos assumir a negação do Senhor Paul, na sua alegre sobrevivência contra tudo e contra todos, como uma parábola existencialista de resistência contra o capitalismo actual, ainda mais desalvorado, ainda mais cruel, mais autofágico.

Nesta alta comédia quase negra, Miguel Loureiro é o impante, inteligente, desesperante e inamovível vencedor, com estilo e crédito aristocráticos.

Álvaro Correia usa a sua estratégia quase “isabelina” das várias escadas, vários níveis, quase palcos, para nos garantir a exiguidade de um espaço, ora constrangedor, desarrumado, claustrofóbico, ora inóspito e desabrigado, dentro de um gigantesco e desértico bastidor por onde as figuras se somem e sempre reaparecem, numa gestão cénica seguramente eficaz e bela.

Viva o novo teatro de intervenção!


jef, 12 de Outubro de 2025

 

«O Senhor Paul» de Tankred Dorst com Ursula Ehler. Com Miguel Loureiro (Senhor Paul) Carlos Malvarez (Senhor Schwarzbeck, o investidor), Íris Cañamero (Anita), José Pimentão (Helm, o herdeiro), Lia Carvalho (Lilo Schöps, a namorada), Maria José Paschoal (Luise, a irmã). Tradução: Vera San Payo de Lemos. Encenação: Álvaro Correia. Cenário: André Guedes. Figurinos: Marisa Fernandes. Desenho de Luz: Manuel Abrantes. Sonoplastia: Vitória. Teatro Aberto. Duração: 1h40.

Fotografias: Filipe Figueiredo.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Sobre o livro «O Jogo da Vida» de Patricia Highsmith, Livros do Brasil / colecção Vampiro160. Tradução de Mascarenhas Barreto. Capa de Lima de Freitas.

 










Patricia Highsmith escreve «A Game for the Living» em 1958, passado essencialmente na cidade do México e, depois, em Acapulco. Interessa-lhe muito mais a perspectiva social de Theodore Schiebelhut, rico pintor alemão exilado num país, e a relação deste com o seu amigo, Ramón Otero, um humilde restaurador de móveis, vivendo num modesto apartamento. Tudo os afastaria, contudo a amizade vence assim como a comum paixão, partilhada por ambos, pela pintora Lelia Ballesteros. Depois, sucede a tragédia, as suspeitas, as acusações, as dúvidas, que vão separando o impulsivo e católico Ramón e o cerebral e agnóstico Theodore. Uma vibração de amizade profunda, quase com timbre de homossexualidade, que vai sendo vigiada pelo inspector Sauzas, um super (ou sobre herói) que coloca a bonomia mexicana nos diversos acontecimentos (por vezes inusitados, em jeito de Agatha Christie) a provocar a trama da intriga, envolvendo-nos e obrigando-nos a ler até ao fim e pela noite fora, suspeitando ora de uma ora de outra personagem.

Para Patricia Highsmith, o que lhe interessa é a observação psicológica das personagens que se movimentam à volta do crime. O crime é apenas o móbil secundário.


jef, setembro de 2025

Sobre a peça «O Nariz de Cleópatra, pois claro!» segundo Augusto Abelaira. Teatro Variedades, 2025.



 


















Em 1962, Augusto Abelaira publicou uma peça de teatro política sobre a possibilidade de sermos felizes apesar da infelicidade alheia. Sermos ainda felizes mesmo após todas as guerras e mortes que existiram e existem sobre o mundo.

No século XXIII, ricos diletantes viajam pelo futuro e pelo passado a seu belo prazer apenas por hedonismo. A revolução francesa, a guerra de Troia. Como visitar o passado sem o beliscar, para que a nossa felicidade não seja comprometida? E se os troianos vencessem os gregos? Que seria dos descendentes de Heitor ou de Ulisses? Ou seja, pelo que Pascal diz “Se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais pequeno, toda a face da terra teria mudado”.

Uma nave espacial, um campo de pré-batalha, Ulisses perdido, Andrómaca desesperada. Um vendedor de óculos que trocam simplesmente o errado pelo certo, um coelho saído da cartola, uma noiva com dois maridos, todos a um passo da felicidade, uma professora que coloca os pontos nos is errados, uma comandante que não pugna pela justiça. Um facto é que os felizes até podem vencer, momentaneamente, porém os infelizes são muitos mais e um dia até podem revoltar-se. Afinal, estão todos mortos. Na realidade, estamos todos mortos!


Teatro Variedades, 28 de Setembro de 2025

«O Nariz de Cleópatra, pois claro!» a partir de «O Nariz de Cleópatra» de Augusto Abelaira. Versão cénica e direção de Cristina Carvalhal. Com Alberto Magassela (Ulisses), Ana Sampaio e Maia (Calipso), Carla Maciel (Andrómaca), Heitor Lourenço (Mário, marido de Calipso), João Grosso (vendedor de Felicidade e Coelho), José Neves (Heitor, Paris, General Francês), Manuela Couto (Professora), Nuno Nunes (Pretendente de Calipso), Sílvia Filipe (Comandante). cenário e figurinos: Nuno Carinhas. Luz Manuel Abrantes. Som Sérgio Delgado. Luz: Ana Carocinho. Produção Causas Comuns / Teatro Nacional D. Maria II. Duração: 2h.

sábado, 27 de setembro de 2025

Sobre o concerto «Sexteto de Jazz de Lisboa», Tivoli, 2025.









Há muito que andava sem escutar jazz.

O Sexteto de Jazz de Lisboa oferece-me um concerto comemorativo dos 40 anos da sua formação, com a sala do Tivoli cheia. Existe qualquer coisa de jovial, de cumplicidade, de brincadeira, quase infantil, no modo como este sexteto vai passando de tema para tema. E dentro de cada um deles, como os músicos passam o testemunho como se se tratasse de cerimoniosa dádiva cúmplice, familiar. Movem-se como se estivessem mergulhados num amável espaço aquático. Os temas oferecidos vêm ainda de um primeiro álbum gravado em 1988, «Ao Encontro», quatro anos após a sua formação.

Ao terceiro tema, mergulhava inteiro nesse meio aquoso do jazz. Apetecia-me chamar-lhe “música clássica” mas poderia ser mal interpretado. Tentava encontrar um padrão para os ouvidos da minha memória – blues, bebop, swing, ecm –, a minha memória percorria as prateleiras do jazz, tentava, viciada, encontrar um escaninho para colocar os temas imaginados por Tomás Pimentel ou Mário Laginha. Contudo, havia uma formulação melódica envolvendo sempre um requebro quase de canção de embalar, quase de movimento de salão de baile. Seria isso que, enfim, eu chamaria “jazz clássico”, ou melhor, o “meu” jazz clássico. Mas, afinal, o jazz não se submete a escaninhos ou escantilhões. É ele propriamente dito, ou propriamente tocado. Ponto final.

Uma noite que me trouxe, com alegria e carinho, o jazz de volta ao meu contínuo sistema musical.

Parabéns pelos 40 anos do Sexteto de Jazz de Lisboa. Aguardo com benévola ansiedade o novo disco.

Sexteto de Jazz de Lisboa – Mário Laginha (piano), Mário Barreiros (bateria), Tomás Pimentel (trompete), Edgar Caramelo (saxofone), Ricardo Toscano (saxofone), Francisco Brito (contrabaixo)

Tivoli, 22 de Setembro de 2025


jef, setembro 2025





segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Sobre o livro «Kafka à Beira-Mar» de Haruki Murakami, Casa das Letras / Bis, 2024. Tradução de Maria João Lourenço.



 







Sustentado por uma tradução fina, rigorosa e circunstanciada de Maria João Lourenço, devidamente enquadrada por notas que fazem todo o sentido para quem não contacta com a cultura japonesa, eis um romance que podemos juntar àquele grupo primordial de obras que nos garantem a traumática passagem da adolescência à vida adulta, da puberdade ao corpo obrigado ao comprometimento. Romances iniciáticos.

 Kafka Tamura tem 15 anos e foge sem destino de casa de seu pai. Porém, o destino persegue-o através do próprio passado e as personagens acompanham-no a par e passo como se uma tragédia grega edipiana se cruzasse com a busca proteccionista da ópera romântica de Verdi. Digamos, realismo fantástico freudiano. Sobre tudo duas ou três histórias vão acompanhando o leitor, quer seja a do próprio Kafka ou a da outra sua metade redentora, o velho ex-alfabetizado Satoru Nakata. Por que razão conseguirá este falar com os seus protegidos gatos? Por que um cão o levará junto ao nefasto Johnnie Walker? Como fará ele para provocar chuva de peixes ou de sanguessugas? E, afinal, qual o resultado do relatório de 1946 sobre o incidente ocorrido no final da grande guerra? Afinal, porque corre a alma viva e abstracta do Coronel Sanders, vestido como KFC?

Murakami define bem as personagens, dá-lhes peso estratégico e emocional, fá-las crescer em personalidade, descreve ponto a ponto as suas roupas, os espaços onde circulam, os objectos que tocam, como num livro policial (que afinal também é) ou ao jeito da literatura oitocentista. Sobre elas disserta sobre as próprias investidas como leitor – Nietzsche, Beethoven, Schubert, a banalização do mal. Por fim, coloca as figuras a vogar numa realidade paralela que quantas vezes surgem para resolver o insolúvel, qual Deus ex machina, talvez em busca de uma “pedra de entrada” que, mais tarde, terá de ser necessariamente “fechada”.

Como entender a leitura de “As Mil e Uma Noites” no interior da familiar Biblioteca Memorial Komura. Quem representa a Senhora Saeki? Quem será a jovem Sakura?

Existe em «Kafka à Beira-Mar» um sentimento de enorme liberdade face às normas morais, às convenções literárias, à diegese tradicional, corrompendo-as, Tal como em Edgar Allan Poe. É inevitável não  associarmos este romance a esse conto da ave de asas de azeviche, à perturbação cerimonial daquele extravagante contista. Não sabemos como nos vamos safar dali, que volta ainda temos de dar em perseguição da história…

… O facto, é que, até ao final, não conseguiremos parar de o ler.

 

jef, setembro 2025

 

domingo, 21 de setembro de 2025

Sobre o espectáculo «Deixem o Pimba em Paz». Feira da Luz, 2025.








 






Ainda não tínhamos chegado à Feira da Luz e já se ouvia “24 Rosas” de José Malhoa, atrasados por causa de um magnífico bacalhau com natas, de magnífica companhia! Enfim, lá furámos, empurrámos (com delicadeza) e chegámos quase lá. Uma multidão exultante delirava com a música tão mal vista e tão acarinhada pelo Verão deste País. O Pimba. No meio do aroma fumarento da bifana e da fartura, os músicos tocavam e cantavam todos aqueles refrões que todos conhecemos e muitos torcem o nariz. Porém, ali, o grande Bruno Nogueira e a airosa Manuela Azevedo debatem-se em duelo de percussão secundados por Filipe Melo (teclas), Nuno Rafael (cordas) e Nelson Cascais (contrabaixo). E lá fomos recordando as cantigas de sempre, encantados com a extraordinária direcção musical dos ditos Filipe Melo e Nuno Rafael – “Na Minha Cama Com Ela”, “Não És Homem para Mim”, “Porque Não Tem Talo o Nabo”, “Azar na Praia”, “Comunhão de Bens”, “Niguém Ninguém”, “Garagem da Vizinha”, “Bichos da Fazenda”, “Sozinha”, “Som de Cristal”, “A Cabritinha”, “Telegrama”, “A Padaria” e “Pito Mau”. (Se faltar alguma ou alguma estiver em excesso é por eu ter tirado agora mesmo da net).

E assim, enfumarado pelos cheiros da feira, elevando o Pimba (que deixou de ser pimba para continuar a ser pimba), Bruno Nogueira diz-nos alto e bom som: “Encontramo-nos na Flotilha de Carnide!”

 

Ideia Original e Direcção Bruno Nogueira

Direcção Musical Filipe Melo e Nuno Rafael

Com Bruno Nogueira, Manuela Azevedo, Filipe Melo, Nuno Rafael e Nelson Cascais

Feira da Luz, 5 de Setembro de 2025

 






sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Sobre o filme «Apanhado a Roubar» de Darren Aronofsky, 2025

 























À pala de Quentin Tarantino.

Até que a Disney podia ter produzido o filme onde a personagem principal é um gatinho fofo, que vai resolvendo a cada passo uma intriga bem arquitectada dentro de um bairro pobre de Nova Iorque, nos finais dos anos 90 do século passado. O gato tem a custódia partilhada entre dois vizinhos: um quase imberbe Hank Thompson (Austin Butler) a trabalhar num bar após um terrível acidente de automóvel que roubou a vida ao seu melhor amigo e destruído uma promissora carreira de basebolista, e Russ (Matt Smith) que, em modo punk, parece ter umas quantas visitas indesejáveis ao domicílio. Este tem de se ausentar por causa da doença terminal do pai, que muito ama, deixando o gato ao cuidado de Hank, que todos os dias telefona a sua mãe, que muito ama. No final, tudo acaba em bem e Hank e o gatinho partem para uma estância balnear algures no magnífico planeta caribenho.

Bem, talvez a Disney tivesse que cortar as imagens ultra-violentas dos choques frontais com árvores e postes; talvez também tivesse algo a dizer sobre a profusão de mortes que sistematicamente perseguem o angelical Hank Thompson, tudo com bastantes litros de sangue a escorrer pelo soalho ou mesmo sobre a sutura feita com cola de contacto após os chantageadores lhe terem arrancado os pontos  a sangue frio, isto depois de lhe terem batido ao ponto do herói ficar sem um rim; talvez aquela produtora rejeitasse ainda a quantidade de mauzões "politicamente incorrectos" – russos (eslavos), latinos, judeus ortodoxos e, claro, uma polícia americana corrupta e maléfica.

Afinal, quase tudo morre mas nós ficamos felizes com o happy end desta comédia sangrenta! Um ponto muito a favor deste filme contra a regra hollywoodesca do “quanto mais lixiviado melhor”.

Outro ponto a favor são as interpretações de Regina King, a investigadora policial Roman, e Zoë Kravitz, a resistente namorada de Hank, Yvonne. Quando surgem parece absorverem totalmente as cenas, eclipsando tudo o resto.

Claro que antes da cena final, surgirá de raspão uma cara inesperada, uma cara muito Lynchiana. Viva!

Sabe sempre bem ver um filme à pala de Quentin Tarantino.


jef, setembro 2025

«Apanhado a Roubar» (Caught Stealing) de Darren Aronofsky. Com Austin Butler, Dominique Silver, Shaun O'Hagan, Action Bronson, Jake Bentley Young, Zoë Kravitz, Kitty Lawrence, Matt Smith, George Abud, Nikita Kukushkin, Yuri Kolokolnikov, D'Pharaoh Woon-A-Tai, Will Brill, Oleg Prudius, Regina King, Gregg Bello, Liev Schreiber, Vincent D'Onofrio, Eddie De Harp, Laura Dern, Macy Rodman, Bad Bunny, Henry Wong. Argumento e romance de Charlie Huston. Produção: Darren Aronofsky e Dylan Golden. Fotografia: Matthew Libatique. Música: Rob Simonsen. Guarda-roupa: Amy Westcott. EUA, 2025, Cores, 109 min.

 


domingo, 31 de agosto de 2025

 









Os Superviventes

 

«Pré-Histórias» é um caso muito sério da música popular portuguesa. E não será apenas por conter um conjunto inesquecível de canções. O álbum que Sérgio Godinho editou em 1972 encerra um fascínio peculiar, emite uma felicidade vindoura, transborda de juventude, solidária e contagiante. Apela à Democracia e à Liberdade.

Mas também não será apenas por isso… «Pré-Histórias» sucede sorridente a um álbum de estreia muito particular «Os Sobreviventes» (1971), que nunca temeu o brilho das duas obras-primas editadas antes, «Cantigas do Maio» de José Afonso e «Mudam-se os Tempos de José Mário Branco.

Mais, Sérgio Godinho afasta-se da circunspecta tradição da balada de Coimbra ou do fado de Lisboa e leva-nos até à jovialidade do rock ou do samba, embrulhando tudo numa teia musical complexa, de aparência simples e popular.

Ou seja, em vez de cantar o fim de uma ditadura, ele prefere anunciar o canto de uma nova ordem, alegre e democrática. Assim é o começo com o estranho “Barnabé”, que é diferente de todos os demais, e o final feliz com a chegada de “O Homem dos 7 Instrumentos”. Mas não se fica por aí, rejeita a poesia erudita e distante, cita um dos grandes poetas da palavra insólita – Alexandre O’Neill – e canta “o medo de ter medo” e o Porto surrealista. Mais, aqui o amor revela-se destemido, lúdico e sensual, “A Noite Passada”, mas também ferido, desesperado e lutador, “Aprendi a Amar”.

Um disco clarividente, onde a juventude, a velhice e o amor à liberdade de viver misturam-se num caos cheio de luminosidade e esperança. Se estas canções resultaram em «Pré-Histórias» foi, sem dúvida, por serem tão verídicas e fundamentais quanto a alegria e a razão que levaram à sua criação.

Um álbum para uma colecção muito restricta.

p.s. lembro-me quando os meus tios me deram o álbum acabado de sair, pelos meus anos, 14 diga-se, e que o ouvi ininterruptamente, como um disco alegríssimo para crianças que suspeitavam que iriam crescer em liberdade!


«Pré-Histórias» de Sérgio Godinho, Guilda da Música / Sasseti, 1972

Março de 1998

jef

 

sábado, 30 de agosto de 2025

Sobre o disco «Meus Caros Amigos» de Chico Buarque, Philips, 1978








Meu Caro Chico

Há discos que o tempo e o intrínseco valor musical fazem saltar das prateleiras carimbadas por épocas, estilos e rótulos fáceis, entrando nos dignos escaparates da  minha música clássica. Há também canções que se ouvem numa época, numa certa idade, que as torna geneticamente nossas, transformando os seus direitos em património cultural sem região ou relógio. Verdi, Gershwin, Mozart, José Afonso, Monteverdi, Cole Porter, Jacques Brel, Bach, Tom Waits… A esta lista, felizmente, poderão juntar-se muitos outros nomes mas ficará sempre incompleta enquanto não incluir o do inventor de canções Chico Buarque de Holanda. Entre obras inesquecíveis, encontramos um disco único que consegue a proeza de juntar dez dessas canções, unidas pela poética abstractamente concreta, os arranjos sinfónicos, o fundamento dos coros e, porque não, o acaso dos meus ouvidos. Afinal, «Meus Caros Amigos» é um disco absolutamente meu! Lá dentro, temos a profundidade de “O Que Será (À Flor da Terra)”, o hino anti-machista “Mulheres de Atenas”, o acto de regeneração afectiva de “Olhos nos Olhos” e “Você Vai Me Seguir», a urgência social e ecológica de “Vai Trabalhar Vagabundo” e “Passaredo”, a ternura quase de embalar “A Noiva da Cidade”, o eterno retorno e a saudade de “Basta um Dia” e “Meu Caro Amigo”. Escutar de novo, agora, este disco é reencontrar lá dentro a melhor memória de mim mesmo e, ao mesmo tempo, reviver o prazer de ouvir cantar (e com que paixão!) em português. «Meus Caros Amigos» é um dos poucos discos a levar para uma certa Berlenga, se deserta, minúscula e longínqua.

«Meus Caros Amigos» de Chico Buarque, Philips, 1978

13 de Dezembro de 1993

jef

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Sobre o filme «O Ouro de Nápoles» de Vittorio De Sica, 1954



 










































Nunca entendi muito bem o que significa o cinema italiano neo-realista. Por ignorância minha e por nunca me ter debruçado afincadamente sobre as teorias sobre ele elaboradas. Os meus pais eram devotos do cinema (e deste em particular) e com eles aprendi a também ser devoto de «Ladrões de Bicicletas (Vittorio De Sica, 1948) e «A Terra Treme» (Luchino Visconti, 1948), expoentes deste cinema. Com estes filmes (estreados no mesmo ano), percebi a carga política socio-económica de uma Europa a sair de uma grande guerra, a miséria de quem trabalhava sem proventos e a necessidade de exaltar a revolta dos explorados para que uma ordem mais justa surgisse. Nestes filmes tudo batia certo, a estética dos planos, o desespero no interior da comoção, o actores-não actores a representarem o dédalo injusto de uma sociedade que lhes negava a vida.

Contudo, ao deparar-me com outras maravilhas do cinema italiano, como por exemplo os seis episódios que integram «O Ouro de Nápoles», saio com o deleite do expressionismo das personagens, com a comicidade teatral de algumas das figuras e, mesmo naqueles dois trechos definitivamente trágicos, “Funeralino” e “Teresa”, a ideia que me fica da mãe órfã do filho, protagonizado por Teresa De Vita, e a esposa por consumar, encarnada por Silvana Mangano, a ideia que retenho é de um hiperactivo expressionismo interior, longe da assunção socio-política que me haviam proposto inicialmente. Talvez mais próximo de um existencialismo Dreyer, Bresson ou Bergman. Mas talvez seja eu que esteja a confundir tudo, a tudo complicar.

É evidente que a histriónica e emocional Nápoles, da alegria e dos desvalidos, dos gritos e do povo na rua, está lá toda. E os ricos são sempre farsantes ou mentirosos e os pobres, apesar de também por vezes mentirosos, são sempre olhados com um carinho descomunal – Totò (Don Saverio) contra Pasquale Cennamo (Don Carmine) em “Il Guappo”. Pierino Bilancioni (o pequeno Gennarino) contra Vittorio De Sica (Il conte Prospero B.) em “I Giocatori”. Eduardo De Filippo (Don Ersilio) contra Gianni Crosio (Alfonso Maria di Sant'Agata dei Fornai) em “Il professore”.

Ao ver estes episódios napolitanos recordo outro filme sobre a mesma cidade «As Mãos Sobre a Cidade» (Francesco Rosi. 1963). Não será este último, esteticamente também irrepreensível, quase uma década mais tarde, muito mais político, contendo sem apelo ou agrave uma crítica profunda a uma sociedade que deixa os mais pobres para trás, um filme muito mais “neo-realista”?

Enfim, permanecendo sem saber lá muito bem como catalogar o cinema italiano, continuo a dever-lhe extrema devoção.

 

jef, agosto 2025

«O Ouro de Nápoles» (L'oro di Napoli) de Vittorio De Sica. Com Totò, Lianella Carell, Sophia Loren, Paolo Stoppa, Pasquale Cennamo, Agostino Salvietti, Giacomo Furia, Alberto Farnese, Tecla Scarano, Pasquale Tartaro, Teresa De Vita, Vittorio De Sica, Pierino Bilancioni, Lars Borgström, Mario Passante, Silvana Mangano, Erno Crisa, Ubaldo Maestri, Eduardo De Filippo, Tina Pica, Nino Imparato, Gianni Crosio. Argumento: Cesare Zavattini, Vittorio De Sica, Giuseppe Marotta. Produção: Dino de Laurentiis, Carlo Ponti. Fotografia: Carlo Montuori. Música: Alessandro Cicognini. Itália, 1954, P/B, 131 min.