Os Superviventes
«Pré-Histórias»
é um caso muito sério da música popular portuguesa. E não será apenas por
conter um conjunto inesquecível de canções. O álbum que Sérgio Godinho editou
em 1972 encerra um fascínio peculiar, emite uma felicidade vindoura, transborda
de juventude, solidária e contagiante. Apela à Democracia e à Liberdade.
Mas
também não será apenas por isso… «Pré-Histórias» sucede sorridente a um álbum
de estreia muito particular «Os Sobreviventes» (1971), que nunca temeu o brilho
das duas obras-primas editadas antes, «Cantigas do Maio» de José Afonso e «Mudam-se
os Tempos de José Mário Branco.
Mais,
Sérgio Godinho afasta-se da circunspecta tradição da balada de Coimbra ou do
fado de Lisboa e leva-nos até à jovialidade do rock ou do samba, embrulhando
tudo numa teia musical complexa, de aparência simples e popular.
Ou
seja, em vez de cantar o fim de uma ditadura, ele prefere anunciar o canto de
uma nova ordem, alegre e democrática. Assim é o começo com o estranho “Barnabé”,
que é diferente de todos os demais, e o final feliz com a chegada de “O Homem
dos 7 Instrumentos”. Mas não se fica por aí, rejeita a poesia erudita e distante,
cita um dos grandes poetas da palavra insólita – Alexandre O’Neill – e canta “o
medo de ter medo” e o Porto surrealista. Mais, aqui o amor revela-se destemido,
lúdico e sensual, “A Noite Passada”, mas também ferido, desesperado e lutador, “Aprendi
a Amar”.
Um
disco clarividente, onde a juventude, a velhice e o amor à liberdade de viver
misturam-se num caos cheio de luminosidade e esperança. Se estas canções
resultaram em «Pré-Histórias» foi, sem dúvida, por serem tão verídicas e fundamentais
quanto a alegria e a razão que levaram à sua criação.
Um
álbum para uma colecção muito restricta.
p.s.
lembro-me quando os meus tios me deram o álbum acabado de sair, pelos meus anos,
14 diga-se, e que o ouvi ininterruptamente, como um disco alegríssimo para
crianças que suspeitavam que iriam crescer em liberdade!
«Pré-Histórias»
de Sérgio Godinho, Guilda da Música / Sasseti, 1972
Março
de 1998
jef