quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Sobre o filme «Volveréis – Voltareis» de Jonás Trueba, 2024



 
















 

Há muitos modos de olhar os filmes de Jonás Trueba: comédia dramática ou drama cómico; experiência cinéfila ou a importância do nada; a intelectualidade literária ou simplesmente a câmara dirigida para o quotidiano.

Em «Voltareis», mais até do que em «Têm de Vir Vê-la» (2022), o espaço da casa onde, há 15 anos, vivem Ale (Itsaso Arana), realizadora, e Alex (Vito Sanz), actor, parece ser o fulcro deste drama com happy end, assim admitido desde o início do filme ou seja desde o seu título. Se no filme de 2022 uma casa devia ser visitada fora de portas madrilenas, aqui a casa bem no centro da capital faz a câmara circular atrás das duas personagens que resolvem separar-se durante uma noite de insónia sob a proximidade de uma tempestade de Verão. Uma belíssima cena.

Segundo uma velha teoria do pai de Ale (Fernando Trueba) serão as separações que devem ser comemoradas ao contrário das uniões. E por essa razão e com essa razão, Ale e Alex resolvem organizar uma festa com amigos e família para o dia 22 de setembro, ultimo dia de Verão.

Também esta máxima, também esse dia são repetidos, minuto a minuto, ao mesmo tempo que a festa vai sendo anunciada perante a incredulidade de todos. Também o movimento de câmara dentro da casa é circular, sem fim, sobre a necessária rotina diária. Também a montagem do filme que Ale está a terminar acompanha essa repetição, como qualquer minuciosa montagem em cinema. E as cenas deste filme sobrepõem-se às do que o espectador vê no momento.

Como um jogo de espelhos, que se colocam frente a frente, as imagens repetem-se infinitamente, sempre iguais mas ao mesmo tempo sempre diferentes. O dia-a-dia, a repetição, a normalização de um caminho constante e comum é enaltecido pelo texto de Kierkegaard, o eterno indeciso. Segundo este, o amor por repetição é muito mais profícuo do que o amor apaixonado e finito inicial, ou o outro entediante que tende para o fim.

Esta comédia por repetição é sustentada pela descomunal cumplicidade dos actores principais, Itsaso Arana e Vito Sanz, que igualmente assinam o argumento e por um enorme conjunto de amigos que impõem o sorriso incrédulo perante cada cena, forçando o casal a justificar sem convicção de maior a sua decisão.

De novo o jogo de espelhos repetido e renovado assegurando ao espectador que o dia-a-dia terá mesmo muito mais valor do que a rotina dentro dele o parece obviar.

Um filme para afirmar a ciência e a arte que sempre existem no interior no quotidiano.


jef, fevereiro 2025

«Volveréis – Voltareis» (Volveréis) de Jonás Trueba. Com Itsaso Arana, Vito Sanz, Fernando Trueba, Andrés Gertrúdix, Francesco Carril, Ana Risueño, Naiara Carmona, Pedro Lozano, Jon Viar, Valeria Alonso, Miguel A. Trudu, Isabelle Stoffel, Lucía Perlado, Simon Pritchard, Joserra Cadiñanos, Sigfrid Monleón, Bárbara Mingo, Camino López, María Herrador, Emilio Rivas, Beatriz Hernández, Dominique You, Mercedes Unzeta. Argumento: Jonás Trueba, Itsaso Arana e Vito Sanz. Produção: Javier Lafuente e Jonás Trueba. Fotografia: Santiago Racaj. Música: Iman Amar, Guillermo Briales, Ana Valladeres. Guarda-roupa: Laura Renau. Espanha, 2024, Cores, 114 min.

 


terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Sobre a peça «A Farsa de Inês Pereira» de Pedro Penim a partir de Gil Vicente, Teatro Variedades 2025



 






















Será mesmo que aquela cena da cadeira foi surripiada do original, oferecendo aquele diálogo “fora de cena” entre os actores Rita Blanco e Hugo van der Ding, arrastando uma humilde cadeira de escritório e os papéis com o texto por dizer? Não me lembro… Os tempos do liceu já vão há muito!

A transcrição de Pedro Penim do texto de Gil Vicente (se falássemos em termos musicais) coloca-nos nesse estado de entre-tempos, entre-modos, entre-morais revelando uma vez mais que o acto dramático é um acto perene. Mesmo que seja representado 502 anos mais tarde, as preocupações e a ironia do género humano mantêm-se de pedra e cal, e o humor do grande dramaturgo revela uma actualidade à prova de relógio ou calendário: 1523-2025!

A cena de abertura da mãe de Inês, Violante, hirta, toda vestida de preto farfalhudo, pugnando pelo trabalho ininterrupto e eterno como princípio vital, pelo sacrifício da mulher como segurança divina, contrasta com todo o decorrer restante da peça onde Inês, deitada rebolando-se na grande cama, recebe os dizeres das alcoviteiras e as propostas casamenteiras. Inês rejeita a moral materna, a política medieval e procura nada fazer em troca de um marido, burguês e rico. Novos tempos chegam com o século XVI. Velhos tempos estes, os do século XXI. A mesma sina. Inês erra com o fanfarrão Brás da Mata, possessivo e castigador, mais tarde aceita de volta a bonomia do camponês endinheirado, Pêro Marques, gozando depois a vida nas ingénuas barbas deste.

Num cenário Pop, um enorme pórtico ogival evidencia as projecções vídeo que fazem de epígrafe a cada cena, legendando-as como nos micro-vídeos para Instagram ou Tic-Toc. À sua volta, demónios espreitam à boa maneira medieval e as portas por onde as cenas se esvaem e as figuras entram e saem ficam tão discretas quanto fantasmagóricas, como um novo gótico modernista, mas sem desvirtuar a comicidade do velho texto de Gil Vicente ou a respectiva adulteração poética, aliás divertidíssima, de Pedro Penim.

Apenas não compreendi a necessidade da cena final, onde Inês parece expiar as suas mágoas ou louvar o seu bom destino, deitada, vogando no rio, feita Ofélia “pré-rafaelita”.

Sem dúvida, uma peça importante que integra a nova e profícua era do teatro português contemporâneo, Pop e popular. Político e provocador.

Uma peça que dá vontade de ir pegar novamente nas velhas selectas de língua portuguesa dos liceus.


16 de fevereiro de 2025

«A Farsa de Inês Pereira» de Pedro Penim a partir de Gil Vicente. Encenação: Pedro Penim. Com Ana Tang, Bernardo de Lacerda, Hugo van der Ding, June João, Rita Blanco, Stela, Vítor Silva Costa. Cenografia e adereços: Joana Sousa. Figurinos: Béhen. Desenho de Luz: Daniel Worm d’Assumpção. Desenho de som e sonoplastia: Miguel Lucas Mendes. Vídeo: Jorge Jácome. Produção: Teatro Nacional D. Maria II. Duração: 100 minutos aproximadamente. Teatro Variedades.

De 12 de fevereiro a 2 de março. Quarta e Quinta 20h00. Sexta 21h00. Sábado 19h00. Domingo 16h00

 

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Apresentação de «Arder no Gelo» de Mélio Tinga / Coleção LXYZ / Edição A Morte do Artista / 2025

 


"As portas do esquadrão da cavalaria abrem-se. Atravessas e nunca te fixas. És como o pássaro que levaste na gaiola, com a decidida intenção de deixá-lo voar (mas está ainda ali, pendurado). Atiraste-te à rua, infestada de tudo o que te foi diluindo. Viver a fugir do vento e do sol. Esbofetear o mundo e entrar para esse teu planeta geométrico, poligonal, imóvel."


«Arder no Gelo» de Mélio Tinga é uma incursão, ou expedição, a um mundo poético onde a prosa se esgueira, libertada, por entre o espaço geográfico infinitamente confinado e o diálogo aberto, quase monólogo atento ao outro que, por hipótese, um dia o ouvirá. Ou lerá.

O livro «Arder no Gelo» de Mélio Tinga foi criado no âmbito da Residência Literária em Lisboa 2023, promovida pelo protocolo de cooperação entre a Câmara Municipal de Lisboa e o Instituto Camões - Centro Cultural Português em Maputo.

 MÉLIO TINGA é escritor de ficção e designer de comunicação. É autor de oito livros, entre os quais «Marizza», sua estreia no romance, obra vencedora do Prémio Literário Imprensa-Nacional Casa da Moeda/ Eugénio Lisboa 2020. Para além de Moçambique, os seus livros estão também publicados em Portugal e no Brasil.

Será apresentado em Lisboa, na Biblioteca Camões (no Chiado), no sábado dia 22 de fevereiro, pelas 18h30, com a participação de Jessica Falconi, investigadora do ISEG, Universidade de Lisboa e Fernanda Cunha pela editora A Morte do Artista.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Sobre a peça «Construção» sobre Três Dramas Históricos de Gertrude Stein. Teatro do Bairro, 2025

























Diz a folha de sala que “Três Dramas Históricos” é uma trilogia escrita por Gertrude Stein em 1930. Pois podemos acrescentar que «Construção» exibe uma liberdade literária e minúcia dramática que faz inveja a muita escrita contemporânea toldada pelos tempos sombrios que andamos a viver. Relembremos que «Ulisses» de James Joyce foi escrito entre 1914 e 1921. «O Som e a Fúria» de William Faulkner foi publicado em 1929. «Orlando»  de Virginia Woolf, em 1928. «Bolero» de Ravel, ouvido em público pela primeira vez em 1928. A liberdade artística e a renovação semântica eram revolucionários. Era necessário encontrar novos caminhos narrativos mesmo que estes fossem aparentemente incompreensíveis ou provocassem a relutância de editores e encenadores.

Três Dramas Históricos de Gertrude Stein sustenta o princípio de surpresa e renovação dramática. Digamos, uma saudável renovação provocatória.

«Construção» é uma peça modernista e expressionista. Como um espectáculo musical (Paulo Abelho e João Eleutério), uma paródia séria próxima da dança moderna (Paula Careto) onde a encenação (António Pires) e a marcação de cena ou os figurinos (Luísa Pacheco) dos seis palhaços ou mimos nos transportam para uma certa inocência infantil, até divagação onírica. A estrutura negra do cenário fazendo desaparecer sincopadamente as figuras coloridas em “stop motion” ou os vidros espelhados que rodam, multiplicando as personagens, fazem-nos crer estar perante um certo circo ou carrossel. “Será que eles estão a entender?”, perguntam os actores olhando os espectadores nos olhos. Será que o edifício está a ser construído naquela esquina? Haverá alguma árvore perto ou longe do campo? Será que um leão nos confronta com o perigo ou apenas o sugere, já que estamos num teatro?”. Será que existe mesmo uma infiltração a partir do telhado? Pling. Plong.

Esta peça só será entendida pela abstracção do significado ou dos múltiplos significados de uma preposição, de uma palavra, de um sintagma.

Esta peça é uma festa para a nossa imaginação. Mergulhemos nela sem sequer tentarmos domesticá-la.


14 de fevereiro de 2025

«Construção» sobre Três Dramas Históricos de Gertrude Stein. Tradução e Adaptação: Luísa Costa Gomes. Encenação: António Pires. Com Cassiano Carneiro, Carolina Campanela, Carolina Serrão, Francisco Vistas, Jaime Baeta, Rita Durão. Cenografia: João Mendes Ribeiro. Figurinos: Luísa Pacheco. Desenho de Luz: Rui Seabra. Música: Paulo Abelho e João Eleutério. Movimento: Paula Careto. Caracterização: Ivan Coletti. Costureira: Rosário Balbi. Construção de cenário: Fábio Paulo. Operação de luz: António Serrão. Operação de som: Matheus de Alencar. Direcção de cena: Alexandre Jerónimo. Estagiárias de guarda-roupa: Sol Piloto e Larissa Angeli. Ilustração: Joana Villaverde. Fotografia de cena e trailer: Manuel Loureiro. Vídeo: Tiago Inuit. Bilheteira: Sofia Estriga. Direcção de produção: Federica Fiasca. Produtor: Alexandre Oliveira. Produção: Ar de Filmes / Teatro do Bairro. Duração: 100 minutos aproximadamente. Teatro do Bairro.

 

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Sobre o filme «Imagem de Uma Mãe» de Hiroshi Shimizu, 1959



 


















Quase no final do filme, existe uma longa pausa, um plano longo sobre uma torneira que, como metrónomo, faz cair sistematicamente o pingo de água sobre um lava-loiças. Esta pausa, suspensão, serve de consciência e recuperação emocionais ao espectador após a leitura da redacção que Michio (Michihiro Mori) escreveu na escola sobre os acontecimentos que até ali nos foram relatados. O espectador chora, como toda a família chora, enquanto a leitura é feita em voz alta.

É surpreendente como a história nos é oferecida sem um pingo de maldade, de um modo tão clássico, tão dramático como se tudo ocorresse em cima de um palco. Planos sempre repetidos sobre rotinas diárias. Casas humildes de uma família remediada num bairro quase pobre. O pós-guerra subentendido e a sobrevivência familiar a ser testada sobre tradições ancestrais.

Também em «Primavera Tardia» (Yasujiro Ozu, 1949), existe uma cena final de uma maçã a ser descascada, suspendendo a acção sobre a comoção. Também em «O Som do Nevoeiro» (Hiroshi Shimizu, 1956) existe esse tempo desencontrado, feito de emoção, espera e luto por cumprir.

Como em «Aniki Bóbó» (Manoel de Oliveira, 1942), a narrativa neorrealista é colocada, absoluta, nas mãos das crianças. Ao contrário de «Bom Dia» (Yasujiro Ozu, 1959), onde a infância é tida por radiosa, colorida, símbolo de revolta benévola e acção do futuro contra a tradição.

Não existe melhor forma de compreender a ondulação emocional que integra a perda de alguém e o luto efectivo. O pombo que voa, aparecendo e reaparecendo vindo dos céus, a fotografia de uma mãe que aparece e reaparece da gaveta ou de dentro do caderno escolar. O tempo que espera, a paciência oferecida, a bondade exigida, o perdão necessário. O carinho como solução.

Uma absoluta obra-prima Se o espectador sair do filme de olhos enxutos, deve verificar se o seu coração não terá sido trocado por uma rocha eruptiva.  


jef, janeiro 2025

«Imagem de Uma Mãe» (Haha no omokage) de Hiroshi Shimizu. Com Jun Negami, Michihiro Mori, Chikage Awashima, Sachiyo Yasumoto, Bontaro Miake, Chieko Murata, Satoko Minami, Tamae Kiyokawa, Nobuo Minamitaka, Tatsuo Hanabu, Yosuke Irie, Tsutomu Nakata, Kan Takami, Kenji Oyama. Produção: Fujio Nakashiro, Kazuyoshi Takeda. Fotografia: Hiroshi Ishida. Música: Yuji Koseki. Guarda-roupa: Julie Harris. Cenografia: Sidney Cain e Robert Laing. Japão, 1959, P/B, 89 min.

 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Sobre o livro «Chá de Asas de Borboleta» de Luís Natal-Marques, Zaina Editores, 2022

 


Um livro de quase encontros, onde as personagens quase se tocam (ou se imaginam) através da memória e da própria consciência, mesmo que vaga, mesmo que condicionada. Um espaço que está embutido numa outra era, talvez mais isolada, talvez mais cerebral.

Uma cidade sem telemóveis situada junto a algumas colinas florestais, com uma revolução antiga capturada por um fotógrafo de rua. Uma casa, local amplo (ou restricto) onde um pavilhão nas traseiras serve de refúgio a Filipe, um coleccionador de borboletas e clarinetista por “imposição clínica”. Um filho, Eduardo, encontrado tardiamente, com quem as conversas são trocadas para esgrimir o empirismo cartesiano da ciência, que tudo anseia explicar, contra a fluidez menos dogmática de um espírito que não necessita de tudo catalogar para se sentir tranquilo.

«A realidade humana não se pode esgotar naquilo que o seu corpo precisa. A realidade humana está muito para além disso. Muito para além da matéria que o compõe. É de cultura, da cultura e do espírito, que eu falo…»

Contudo, o passado existe e condiciona. Madalena, a mãe, firme e obstinada (e obcecada) pela estética vermelha de uma ditadura que revolucionaria o futuro do mundo mas que, afinal, apenas lhe veio cativar o casulo colorido onde escondeu o seu presente.

Eduardo também será fruto do casulos dos outros, a partir dos quais teceu os fios da teia de memórias alheias, onde se aprisionou. Talvez seja a partir delas que venha a possibilidade de se libertar.

A todos o direito (talvez o dever) da sua própria espiritualidade. Espiritualidade, sem dogmas ou Deus, cingida apenas pelo livre arbítrio que é cativo apenas de um corpo que o tempo vai moldando.

Um tempo tão efémero quanto o concedido à vida de uma frágil mas bela borboleta. Ou do instintivo e breve som que se escapou de uma ária para clarinete.


jef, fevereiro 2025

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Sobre a peça «A Médica» de Robert Icke. Teatro da Trindade, 2025



























Uma peça sobre o vertiginoso, ansioso, talvez angustiado, estado colectivo e individual em que andamos mergulhados nos dias que passam. Apesar de representar o ponto de partida, aqui não será apenas a questão hospital da urgência da tomada das medidas necessárias, dentro do quadro da ética profissional, para salvar uma criança que praticou a si própria um aborto em casa de uma família católica.

Nesta peça de Robert Icke, nascido em 1986 e revisitando a questão ética e médica de uma peça de Arthur Schnitzler (1912), podemos contemplar o conflito agitado sobre a decisão clínica em torno de uma jovem moribunda. A família ainda não chegou e à porta do quarto do hospital confrontam-se a médica, directora clínica do hospital, e um padre amigo da família. A decisão tomada é posta em causa e as consequências assumem proporções mediáticas.

Mas a questão de dramaturgia principal nesta encenação é a teia de cenários em que nunca chegam a ser definitivamente alterados. As diversas situações passam-se em torno de uma mesa e de algumas cadeiras todas brancas, na ribalta de uma cortina que esconde o olhar de um certo coro grego.

Num enorme arco de analepse, um telefonema anuncia o drama afectivo que tem de ser cumprido e deve ser escondido: “para haver uma certidão de óbito é apenas necessário um cadáver” Esse mesmo telefonema concluirá também um arco de solidão suprema.

O acto solitário que faz a bainha a todas as questões que entretanto se foram expondo a um ritmo quase alucinado e de falas sobrepostas e cadeiras que vão deslisando entre as várias cenas. E não são apenas os cenários que se sobrepõem, também as questões de género, de cor de pele, de origem genética, de religião, de orientação sexual. De demência. Todas incluídas na mesma personagem que, afinal, são personagens díspares. Como se fossem matrioskas a tentar sobreviver ao julgamento imediato e mediático das redes sociais e do preço mais certo de uma ideia populista atirada na entrevista realizada por um talk show televisivo. A cada um, a sua ideia sem escrutínio. A cada um, o seu mais arreigado isolamento.

Tal como em «Querido Evan Hansen» (de Steven Levenson, Benj Pasek, e Justin Paul / Rui Melo, 2024), aqui também a urgência de representar ou efabular ou exorcizar os “pecados” de uma sociedade que aprendeu apenas a gritar para o fundo do poço do telemóvel de cada um dos seus viventes.

Inicialmente, talvez o atropelo de algumas falas me tenham confundido e provocado alguma distracção na linha da compreensão, contudo tudo o que é aqui contado está apenas a um passo ilógico do nosso dia a dia.

Se não for a arte e o teatro em especial, o que seria da nossa actual e mais belicosa realidade.

Um aplauso especial para Custódia Gallego, Adriano Luz, Rita Cabaço e Sandra Faleiro. Um abraço a Ricardo Neves-Neves, pela coragem.


7 de fevereiro de 2025

«A Médica» de Robert Icke. Tradução: Ana Sampaio. Encenação: Ricardo Neves-Neves. Com Adriano Luz, Custódia Gallego, Eduarda Arriaga, Igor Regalla, Inês Castel-Branco, José Leite, Luciana Balby, Maria José Paschoal, Pedro Laginha, Rita Cabaço, Sandra Faleiro e Vera Cruz Cenografia: Fernando Ribeiro. Figurinos: Rafaela Mapril. Desenho de luz: Cristina Piedade. Sonoplastia: Sérgio Delgado. Produção: Nuno Pratas Teatro da Trindade INATEL, Teatro do Eléctrico, Culturproject, Teatro Nacional São João e Cineteatro Louletano. 110 minutos.

Até 16 de fevereiro de 2025

Quarta a Sábado 21h00 / Domingo 16h30

 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Sobre o filme «A Semente do Figo Sagrado» de Mohammad Rasoulof, 2024
























O Irão tem uma cinematografia espantosa e este filme é o corolário lógico do seu poder criativo que nos habituou a ver transformar a realidade iraniana na mais bela e emocional ficção! 

Cinema social e político que usa todas as parcelas narrativas e as técnicas do cinema de acção, do cinema policial, de suspense, para conceber um thriller deixando sem fôlego a emoção do espectador. E o espectador, de tão concentrado está na acção do filme, quase não tem capacidade para apreciar em simultâneo a beleza do enquadramento de cada uma das sequências das cenas, filmadas secretamente dentro de portas, ou escondidas pelos desertos montanhosos, ou no interior da aldeia abandonada.

A história de uma azarada promoção dentro da polícia de “investigação”, uma espécie de presente envenenado, concedida a Iman (Missagh Zareh) que ali vê a possibilidade de dar à família – à mulher, Najmeh (Soheila Golestani) e às duas filhas, Rezvan (Mahsa Rostami) e Sana (Setareh Maleki) –, a possibilidade de darem uma volta à vida e mudarem-se para uma casa muito maior e melhor.

Contudo, nessa semana acontece a morte, em circunstâncias inexplicáveis, dentro de uma esquadra em Teerão, da estudante Mahsa Amini, levando aos tumultos violentos entre o meio estudantil frequentado pelas duas irmãs, Rezvan e Sana.

E se as sequências domésticas ficcionadas são filmadas secretamente, as da revolta são mostradas através dos ecrãs de telemóveis representando o tempo real que, nessa altura, as estudantes em revoltam foram registando nos próprios aparelhos. Um modo extraordinário de dizer o que não se pode dizer, de ficcionar a realidade e de mostrar ao mundo aquilo que estava a ser proibido.

A história da atracção cega que a proximidade do poder provoca. Também de uma possível ascensão e da certa e brutal queda de uma família feliz.

Este ano, mais um exemplo estético da imprescindível vocação que o cinema tem para apelar à consciência política e social no Mundo, lendo-nos a extraordinária resistência que os povos sempre possuem.


jef, janeiro 2025

«A Semente do Figo Sagrado» (The Seed of the Sacred Fig) de Mohammad Rasoulof. Com Soheila Golestani, Missagh Zareh, Mahsa Rostami, Setareh Maleki, Niousha Akhshi, Reza Akhlaghirad, Shiva Ordooie, Amineh Mazrouie Arani. Argumento: Mohammad Rasoulof. Produção: Mohammad Rasoulof, Rozita Hendijanian, Amin Sadraei, Jean-Christophe Simon, Mani Tilgner. Fotografia: Pooyan Aghababaei. Música: Karzan Mahmood. Guarda-roupa: Nazanin Tavassoli. Irão / França / Alemanha, 2024, Cores, 168 min.