Será
mesmo que aquela cena da cadeira foi surripiada do original, oferecendo aquele
diálogo “fora de cena” entre os actores Rita Blanco e Hugo van der Ding,
arrastando uma humilde cadeira de escritório e os papéis com o texto por dizer?
Não me lembro… Os tempos do liceu já vão há muito!
A
transcrição de Pedro Penim do texto de Gil Vicente (se falássemos em termos
musicais) coloca-nos nesse estado de entre-tempos, entre-modos, entre-morais
revelando uma vez mais que o acto dramático é um acto perene. Mesmo que seja
representado 502 anos mais tarde, as preocupações e a ironia do género humano mantêm-se
de pedra e cal, e o humor do grande dramaturgo revela uma actualidade à prova
de relógio ou calendário: 1523-2025!
A
cena de abertura da mãe de Inês, Violante, hirta, toda vestida de preto farfalhudo, pugnando
pelo trabalho ininterrupto e eterno como princípio vital, pelo sacrifício da
mulher como segurança divina, contrasta com todo o decorrer restante da peça
onde Inês, deitada rebolando-se na grande cama, recebe os dizeres das
alcoviteiras e as propostas casamenteiras. Inês rejeita a moral materna, a
política medieval e procura nada fazer em troca de um marido, burguês e rico. Novos tempos chegam com o século XVI. Velhos
tempos estes, os do século XXI. A mesma sina. Inês erra com o fanfarrão Brás da
Mata, possessivo e castigador, mais tarde aceita de volta a bonomia do camponês endinheirado, Pêro
Marques, gozando depois a vida nas ingénuas barbas deste.
Num
cenário Pop, um enorme pórtico ogival evidencia as projecções vídeo que fazem
de epígrafe a cada cena, legendando-as como nos micro-vídeos para Instagram ou
Tic-Toc. À sua volta, demónios espreitam à boa maneira medieval e as portas por
onde as cenas se esvaem e as figuras entram e saem ficam tão discretas quanto
fantasmagóricas, como um novo gótico modernista, mas sem desvirtuar a
comicidade do velho texto de Gil Vicente ou a respectiva adulteração poética,
aliás divertidíssima, de Pedro Penim.
Apenas
não compreendi a necessidade da cena final, onde Inês parece expiar as suas
mágoas ou louvar o seu bom destino, deitada, vogando no rio, feita Ofélia “pré-rafaelita”.
Sem dúvida, uma peça importante que integra a nova e profícua era do teatro português contemporâneo, Pop e popular. Político e provocador.
Uma peça que dá vontade de ir pegar novamente nas velhas selectas de
língua portuguesa dos liceus.
16
de fevereiro de 2025
«A
Farsa de Inês Pereira» de Pedro Penim a partir de Gil Vicente. Encenação: Pedro
Penim. Com Ana Tang, Bernardo de Lacerda, Hugo van der Ding, June João, Rita
Blanco, Stela, Vítor Silva Costa. Cenografia e adereços: Joana
Sousa. Figurinos: Béhen. Desenho de Luz: Daniel Worm d’Assumpção. Desenho de
som e sonoplastia: Miguel Lucas Mendes. Vídeo: Jorge Jácome. Produção: Teatro
Nacional D. Maria II. Duração: 100 minutos aproximadamente. Teatro Variedades.
De 12 de fevereiro a 2 de março. Quarta e Quinta 20h00. Sexta 21h00. Sábado 19h00. Domingo 16h00
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