domingo, 9 de fevereiro de 2025

Sobre a peça «A Médica» de Robert Icke. Teatro da Trindade, 2025



























Uma peça sobre o vertiginoso, ansioso, talvez angustiado, estado colectivo e individual em que andamos mergulhados nos dias que passam. Apesar de representar o ponto de partida, aqui não será apenas a questão hospital da urgência da tomada das medidas necessárias, dentro do quadro da ética profissional, para salvar uma criança que praticou a si própria um aborto em casa de uma família católica.

Nesta peça de Robert Icke, nascido em 1986 e revisitando a questão ética e médica de uma peça de Arthur Schnitzler (1912), podemos contemplar o conflito agitado sobre a decisão clínica em torno de uma jovem moribunda. A família ainda não chegou e à porta do quarto do hospital confrontam-se a médica, directora clínica do hospital, e um padre amigo da família. A decisão tomada é posta em causa e as consequências assumem proporções mediáticas.

Mas a questão de dramaturgia principal nesta encenação é a teia de cenários em que nunca chegam a ser definitivamente alterados. As diversas situações passam-se em torno de uma mesa e de algumas cadeiras todas brancas, na ribalta de uma cortina que esconde o olhar de um certo coro grego.

Num enorme arco de analepse, um telefonema anuncia o drama afectivo que tem de ser cumprido e deve ser escondido: “para haver uma certidão de óbito é apenas necessário um cadáver” Esse mesmo telefonema concluirá também um arco de solidão suprema.

O acto solitário que faz a bainha a todas as questões que entretanto se foram expondo a um ritmo quase alucinado e de falas sobrepostas e cadeiras que vão deslisando entre as várias cenas. E não são apenas os cenários que se sobrepõem, também as questões de género, de cor de pele, de origem genética, de religião, de orientação sexual. De demência. Todas incluídas na mesma personagem que, afinal, são personagens díspares. Como se fossem matrioskas a tentar sobreviver ao julgamento imediato e mediático das redes sociais e do preço mais certo de uma ideia populista atirada na entrevista realizada por um talk show televisivo. A cada um, a sua ideia sem escrutínio. A cada um, o seu mais arreigado isolamento.

Tal como em «Querido Evan Hansen» (de Steven Levenson, Benj Pasek, e Justin Paul / Rui Melo, 2024), aqui também a urgência de representar ou efabular ou exorcizar os “pecados” de uma sociedade que aprendeu apenas a gritar para o fundo do poço do telemóvel de cada um dos seus viventes.

Inicialmente, talvez o atropelo de algumas falas me tenham confundido e provocado alguma distracção na linha da compreensão, contudo tudo o que é aqui contado está apenas a um passo ilógico do nosso dia a dia.

Se não for a arte e o teatro em especial, o que seria da nossa actual e mais belicosa realidade.

Um aplauso especial para Custódia Gallego, Adriano Luz, Rita Cabaço e Sandra Faleiro. Um abraço a Ricardo Neves-Neves, pela coragem.


7 de fevereiro de 2025

«A Médica» de Robert Icke. Tradução: Ana Sampaio. Encenação: Ricardo Neves-Neves. Com Adriano Luz, Custódia Gallego, Eduarda Arriaga, Igor Regalla, Inês Castel-Branco, José Leite, Luciana Balby, Maria José Paschoal, Pedro Laginha, Rita Cabaço, Sandra Faleiro e Vera Cruz Cenografia: Fernando Ribeiro. Figurinos: Rafaela Mapril. Desenho de luz: Cristina Piedade. Sonoplastia: Sérgio Delgado. Produção: Nuno Pratas Teatro da Trindade INATEL, Teatro do Eléctrico, Culturproject, Teatro Nacional São João e Cineteatro Louletano. 110 minutos.

Até 16 de fevereiro de 2025

Quarta a Sábado 21h00 / Domingo 16h30

 

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