Duvido que o realizador M. Night Shyamalan tivesse lido
«Aventuras de João Sem Medo» quando filmou «A Vila» (2004), esse estranho ermo murado,
de onde era difícil sair, repleto de medos inventados e moral agressiva e subserviente.
Se o tivesse feito teria sorrido certamente com a analogia da fantasia de José
Gomes Ferreira. Um livro a que o autor deu o mote de “Panfleto Mágico em Forma
de Romance”.
A vila neste caso chama-se Chora-Que-Logo-Bebes e é descrita
logo no primeiro capítulo do folhetim: «Tudo isto incitava os habitantes da
aldeia a andarem de monco caído, sempre constipados por causa da humidade, e a
ouvirem com delícia canções de cemitério ganidas por cantores trajados de luto,
ao som de instrumentos plangentes e monótonos.» Claro que João Sem Medo foge logo
à segunda página desta triste povoação e da sua mãe lacrimosa.
José Gomes Ferreira entretém-se com uma extraordinária colecção
de adjectivos classificando os dois lados do Muro. «E as fontes embaladoras
desdobravam o seu vagaroso sussurro de tédio dormente. […] De tal forma que
resolveu acordar-se com dois ou três gritos e insultos que vararam a Floresta
Adormecida:
– Então aqui não vive ninguém? Nem nereidas, nem faunos, nem
gnomos, nem nada? Foi para esta pasmaceira que eu escalei o Muro, digam lá?»
E o tom de alegre acrimónia contra o tom melífluo dos contos
de fada vai crescendo em João Sem Medo, através dos diversos episódios inicialmente
publicados no periódico «O Senhor Doutor», em 1933. Uma paródia sem tino a
cruzar as ‘Viagens de Gulliver’ e o ‘Principezinho’, onde a coragem, essa força
que vem do coração, é atravessada de peripécias mirabolantes com ‘bichos-meio-máquina-meio-divindade-Grimm’,
e fins abruptos e escanifobéticos, ao estilo deus ex-machina, pois os caracteres
estariam a esgotar-se. Textos enfim publicados em livro em 1936.
Este livro é mesmo muito interessante, e não é só por essa desfaçatez
anti-dogma literário que faz o autor divertir-se divertindo os leitores através
da criação de um mundo libertário e anarquista, quixotesco, que goza com
qualquer Plano Nacional de Leitura que obriga a ler quem não quer ler,
contestando igualmente o fato apertado de um realismo-neo-realista que não lhe
assenta por medida.
Claro que este maravilhoso conjunto de 15 episódios contém
duas pérolas absolutas da literatura psicológica e social. «O Príncipe das
Orelhas de Burro» e «Os Três Incompetentes Triunfantes». Se não estão incluídos
nas antologias de contos é um crime de lesa literatura.
E no final há uma nota essencial e tão actual do próprio autor
(1973) sobre uma certa vida cultural deste país do Chora-Que-Logo-Bebes e que assim
termina:
«Bruxas? Não existem – dirão os senhores peremptórios,
naturalistas e suficientes.
Pois não.
Mas a caça às bruxas, isso afirmo-vos eu que há.»
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