Considerado um clássico, contém três dos textos breves de
Mário de Carvalho. Esses contos quase novelas que deixam a sensação no leitor
de ter lido longos e frutuosos romances. A contenção no número de palavras face
ao narrado e descrito, desenvolvendo por artes e manhas de vocábulos certeiros,
verbos incisivos e substantivos que muito adjectivam, tem o estranho e
inclassificável poder de fazer acreditar no que se lê transportando-nos para os interstícios de um passado por que nunca passámos.
Mais do que a guerra (no ambiente colonial português), estes
textos desvendam o lugar da morte e a distância a que o protagonista (e por sua
via o leitor) dela se encontra. Os alferes, o centro das narrativas, são entes por idade e formação técnica e política, distantes dos graduados de carreira ou dos soldados
que entram na guerra por mandato de inconsciência; distantes dos seus corpos e
almas, das suas perspectivas profissionais e percursos familiares. Homens
distantes que observam a morte do lado de fora, ou talvez de um lado de fora
demasiado interior, explicando-nos a história como «ouvintes» que também o são.
O humor, uma tecla primordial no escritor, é usado de modo agudo
aumentando a compreensão crítica dos planos narrativos e apartando protagonistas
e leitores.
Seria pecado, negando o prazer à leitura, ditar algo que
desvendasse a intriga, nobremente urdida, subtraindo o espanto de certo modo
mágico que o leitor sofre ao chegar às últimas páginas. Mestre do suspense é
Mário de Carvalho.
Apenas pode dizer-se que esses tempo e espaço que separam a
morte (e a guerra) no primeiro texto são vistos pelo alferes ao ser colocado num
extemporâneo aquartelamento de cavalaria. Como de uma plateia de
cinema. Enquanto no segundo conto, o espectador, alferes, público, é situado,
imóvel, num bimotor a caminho de Baucau ao lado de um major «suspeito» que lhe vai
contando uma história em jeito xerazádico, tal como Stefan Zweig tanto gosta de
fazer nas suas novelas. Por último, a distância e o tempo encurtam-se
desmedidamente mas o terceiro alferes permanece do lado de fora, totalmente
fora de si. Como peixe fora de água, rente às suas botas, ao capim. Fora do seu
mundo, do mundo da guerra, do mundo da morte. Lembrei-me de um dos contos de
Boris Vian em «As Formigas».
Um assombro narrativo.
jef, outubro 2018
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