Se, porventura, existisse um instrumento musical que
transformasse o tempo em espaço líquido, esse objecto sem forma ou contornos,
clepsidra fora do vidro, seria muito parecido com o sono. Ou com a sesta.
Como uma criança que recusa desenhar nos pequenos cantos das
páginas, André Ruivo não teme e cativa-lhes o centro criativo, como as linhas
em espiral, hipnóticas também, de um vinil. Sonolentas mas não deprimidas.
A hipnose dolente de uma tarde de Verão, «Não pensar em
nada…». Não ouvir nada, «Brrroooomm!!» «Crash!» «Zzzzziiing!» «Boum!». Quase
todas as páginas se inscrevem nesses traços próximos, negros no branco dos
olhares velados pela dormência, pelo tédio ligeiro que surge antes da ausência
imposta ao corpo pelo baixar das pálpebras. Aquele primeiro sonho ainda cravado
de realidade que aos poucos abranda e entra na abstracção cubista de um
candeeiro, uma cadeira, um quadrado, um triângulo. Qual dos quatro objectos
contém mais simbolismo, nos propõe um sinal mais forte? Não reparemos numa
clave de sol que se ouve de olhos fechados. Centremo-nos na interrogação
multiplicada na página.
André Ruivo em «Zzzzzzzzzz», longe da agitação psíquica de «Mystery
Park» (chili com carne, 2012) ou das travessuras cromáticas e urbanas de
«Aventuras de Qualquer Coisa» (Stolen Books, 2018), lança-se, forte, perante a
vontade de desenhar qualquer coisa que, de tão discreta ou linear, se torna
imprescindível: vários casais que se apoiam enquanto se escondem; um
espreguiçar franco; um, apenas um, mas o mais sincero, sorriso declarado.
André Ruivo vence o silêncio pela influência branda do sono,
tocando no livro todas as suas facetas gráficas mais íntimas mas preenchendo
somente com linhas escuras o espaço que aqui é muito amplo, páginas invadidas
pela harmonia vital de um bocejo terno.
jef, junho 2019
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