terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Sobre o livro «Todos os Fogos o Fogo» de Julio Cortázar (1966). Ficções n.º 4, Editorial Estampa, 1974. Tradução de Carlos Barata.










Oito contos cada qual singrando por caminhos distintos, duplos, talvez anacrónicos. Através deles as personagens multiplicam-se e as vozes misturam-se e vagueiam por diversos cenários, paisagens, épocas, confrontos inconclusivos. Porém, a morte, tal como a perda ou a separação, mesmo o esquecimento, são aqui servidos como pratos frios e fortes numa estratégia onde o diálogo se coloca na frente de um espelho facetado ou é visto como fractal visual, feérico e cinematográfico.

Pelo meio está «A Menina Cora» onde todas as palavras e silêncios ditos se estabelecem em simultâneo, acompanhando o internamento do jovem Pablo envergonhadamente apaixonado pela enfermeira que lhe tira a febre ou lhe passa a mão pelo rosto.

Também o allegro e o adagio do quarteto de cordas de Mozart, «A Caça» (KV 458), vem explicar o reencontro ansiado dos guerrilheiros que subiram do pântano ameaçado até às colinas protegidas da montanha. «Reunião».

Ou a vibrante distopia automobilística inicial, «A Autoestrada do Sul» em jeito de vigília fahrenheit 451.

Ou, mais no final, titular, no qual o fogo cruzado é dado a beber a todos os protagonistas, quer seja o procônsul que antes oferece a Irene, sua mulher, a taça com o sangue de Marco, seu amante, cruzando-se com um diferente triângulo cujo final é anunciado pelo som do riscar de um fósforo ouvido ao telefone pela amante preterida. A Voz Humana.

«Todos os Fogos o Fogo» é um belíssimo livro em que a comédia e a tragédia se interceptam apanhando o leitor sem aviso. Um prodígio de narração “coral” onde a beleza imaginativa da descrição apenas solidifica a capacidade que o autor tem em sobrepor os diferentes naipes de vozes e de tempos inconciliáveis.


jef, dezembro 2021

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