Gosto
de ler teatro. Com o meu tempo, a minha imaginação, o meu passado, as minhas
supostas didascálias. Parecem peças que circulam, muito abstractas, suspensas,
nesse modo de substanciar o que é efémero e fantasioso.
Ricardo
Cabaça, também encenador, junta quatro peças contemporâneas sobre o eterno
contemporâneo, onde as personagens vivem no e do mundo onírico do engano e da
manipulação. Nada mais clássico.
“Esqueletos
vivem dentro de sonhos”: uma estranha mulher vê-se aprisionada num aquário e é
mostrada como atracção de circo. Quem assim a expõe é o marinheiro que, afinal,
se encontra preso nos sonhos dela, dessa estranha mulher que se cobre de
escamas, deambulando, antes, pelos delírios de um irmão e de uma irmã que se julgam
siameses, sentados na borda de uma banheira.
“Fake
News: Naked Fews” (acto único): m.a.u.r.o., d.a.n.i. e m.a.r.i.o.
são personagens-anagramas que elucidam sobre o modo actual de olhar a verdade
de uma realidade que surge como fictícia ou virtual, multiplicada e falseada
por milhões de manipuladores. Eles vêm esclarecer, pedir o apoio e
solidariedade do público, enlaçando-o, proclamando que irão aniliquilar as fake-news com o extraordinário método –
as naked fews. Contudo…
“Ninguém
morre ao domingo” (acto único): no quarto, uma criança está
sozinha e brinca às famílias fazendo girar um velho carrocel desenterrado. Um thriller infantil onde todos circulam
num terreno minado. “Ninguém morre ao domingo?”, pergunta. “Ao domingo não.”,
responde o pai. “Nunca é domingo para toda a gente.”, corrige a mãe.
“Anti-Benjamim”
(acto
único): depois de uma visita ao laboratório, Óscar, conhecido dramaturgo, é
aliciado por Eliza, directora de marketing. No entanto, a voz desta parece ser
mecânica, programa, não natural. Surge fatal. Quem vencerá?
Eu
gosto de ler teatro pois, na real realidade, o teatro é a mais benévola e
esclarecida das manipulações. Se no teatro a sério, actores e plateia estão
cientes e participam convictos dessa boa mentira, na leitura de uma peça o
leitor está só mas é rei e senhor do seu tempo e do seu espaço únicos.
Ricardo
Cabaça interpela e interpreta com sagacidade as origens da permanente ansiedade
do nosso actual dia-a-dia.
jef,
fevereiro 2023
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