domingo, 25 de junho de 2023

Sobre o livro «O Diabo» de Gonçalo M. Tavares, Bertrand 2022










O caderno 47 do autor aprofunda a secção “Mitologias” da sua Biblioteca, talvez o conjunto das suas obras (com «A Mulher-Sem-Cabeça», 2017, e «Cinco Meninos, Cinco Ratos», 2018) mais estranhamente amoral.

Contudo, em Gonçalo M. Tavares, existe um princípio permanente de descoberta da linguagem. E esse princípio tem um lado sistemático muito próximo do lado lúdico que a leitura possui em génese.

É a interpretação da própria cadência das frases, o modo como as imagens simples mas fortíssimas surgem sem explicação, o desfilar de dezenas de personagens que utilizam a maldade como arma do poder, provocando o medo e desaustinando os protagonistas. Neste caso (como no livro anterior desta série), regressa a educação pela força dos irmãos Alexandre, Olga, Maria, Tatiana e Anastácia. Uma educação que inclui a domesticação do Diabo que com eles se senta à mesa.

Mas essa domesticação dos Meninos ou educação do Diabo passa sempre pela catalogação de imagens sucessivas, como acontecia quando se ouviam as histórias “desmoralizadoras” (mas de encantar) dos Irmãos Grimm ou os contos populares portugueses reunidos por Adolfo Coelho, Maria Amália Vaz de Carvalho ou Gonçalves Crespo. Os cenários, os objectos, a relação de forças e acções são encadeadas para provocar uma espécie de alucinação viril ou de materna admoestação. Sempre física, apesar de onírica.

Para ler Gonçalo M. Tavares (e “Mitologias” em particular) é necessário, em primeiro lugar, colocar a leitura num espaço cósmico sem limites, onde a amoralidade da narrativa, o escantilhão estético e afecção das imagens representam o permanente reinício do nosso abecedário.


«E quando o Grande-Pânico é atirado para cima de um Povo-Inteiro, como antes se atirava, das muralhas do castelo, óleo quente para a cabeça dos invasores, mil pés querem ir para mil direcções e assim isolados serão caçados como as ovelhas são caçadas pelos lobos famintos – e é por isso que Os-Meninos-com-os-Pés-para-Dentro são quase santos, porque orientam e salvam quando o Povo-Inteiro está perdido na floresta ou no Grande-Pânico.»

 jef, junho 2023

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