O
caderno 47 do autor aprofunda a secção “Mitologias” da sua Biblioteca, talvez o
conjunto das suas obras (com «A Mulher-Sem-Cabeça», 2017, e «Cinco Meninos,
Cinco Ratos», 2018) mais estranhamente amoral.
Contudo,
em Gonçalo M. Tavares, existe um princípio permanente de descoberta da
linguagem. E esse princípio tem um lado sistemático muito próximo do lado
lúdico que a leitura possui em génese.
É
a interpretação da própria cadência das frases, o modo como as imagens simples
mas fortíssimas surgem sem explicação, o desfilar de dezenas de personagens que
utilizam a maldade como arma do poder, provocando o medo e desaustinando os
protagonistas. Neste caso (como no livro anterior desta série), regressa a
educação pela força dos irmãos Alexandre, Olga, Maria, Tatiana e Anastácia. Uma
educação que inclui a domesticação do Diabo que com eles se senta à mesa.
Mas
essa domesticação dos Meninos ou educação do Diabo passa sempre pela
catalogação de imagens sucessivas, como acontecia quando se ouviam as histórias
“desmoralizadoras” (mas de encantar) dos Irmãos Grimm ou os contos populares
portugueses reunidos por Adolfo Coelho, Maria Amália Vaz de Carvalho ou Gonçalves
Crespo. Os cenários, os objectos, a relação de forças e acções são encadeadas
para provocar uma espécie de alucinação viril ou de materna admoestação. Sempre
física, apesar de onírica.
Para
ler Gonçalo M. Tavares (e “Mitologias” em particular) é necessário, em primeiro
lugar, colocar a leitura num espaço cósmico sem limites, onde a amoralidade
da narrativa, o escantilhão estético e afecção das imagens representam o permanente
reinício do nosso abecedário.
«E
quando o Grande-Pânico é atirado para cima de um Povo-Inteiro, como antes se
atirava, das muralhas do castelo, óleo quente para a cabeça dos invasores, mil
pés querem ir para mil direcções e assim isolados serão caçados como as ovelhas
são caçadas pelos lobos famintos – e é por isso que Os-Meninos-com-os-Pés-para-Dentro
são quase santos, porque orientam e salvam quando o Povo-Inteiro está perdido
na floresta ou no Grande-Pânico.»
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