Existe
neste musical um extraordinário grau de bom senso sem sentido que faz todo o
sentido nos dias de hoje que parecem não fazer sentido. Brincar com a morte e o
mórbido é uma tarefa do eterno estado da arte. Brincar com a família também,
como é óbvio. Brincar com o amor, idem.
Nos
tempos que correm, com a guerra planetária e as imagens de um mundo em ruínas,
de morte, de famílias despedaçadas, um mundo quase gótico, pré-romântico, o
musical de Ricardo Neves-Neves «A Família Addams» faz ainda mais sentido sem
sentido. E então se começarmos a pensar nas famílias norte-americanas
evangelizadas por um louco desvairado de cabelo cor-de-laranja e gravata
vermelha, então ir ao Maria Matos devia entrar no Plano Nacional de Teatro.
Acima
de tudo, este musical é um clássico, muito simples, muito ingénuo, muito crédulo, cuja trama é
o Romeu-e-Julieta, aliás Wednesday-Lucas. Mas sem a tragédia final. A jovem Wednesday vem de uma família
ultra-funcional onde a mentira nunca existiu e a confiança, a lealdade e o amor
são o cimento de uma relação entre todos amorosa, para não dizer fraterna.
Apenas o tempo prolongado, o poder da noite e do negro e a atracção pela
decrepitude e pelo tétrico a distingue de uma família qualquer. Afinal, ela pertence
ao clã Addams. O jovem Lucas vem de uma família tradicional americana, conservadora,
cumpridora e casta. O pai parece ser trabalhador honesto e a mãe tem uma
tendência irresistível para ao lirismo poético. Wednesday e Lucas estão apaixonados
mas em segredo e na família Addams uma suspeita de segredo é considerada pecado.
O problema é que foi marcado um jantar para receber a família de Lucas e uma
espécie de elixir da verdade foi roubado ao armazém de venenos da avó Addams. O caldo está entornado.
Numa encenação sem qualquer pausa ou ponto morto, o corpo de bailarinos que fazem de antepassados Addams, impossibilitados de regressar à cripta, formam um ininterrupto corrupio de mortos-vivos, quase não contracenam mas formam todo o sustento cenográfico. As vozes de Ruben Madureira (Gomez), de Joana Manuel (Morticia), Brienne Keller (Wednesday) e Alexandre Carvalho (Tio Fester) fazem-nos esquecer que a orquestra não se apresenta. Contudo, o desenho de som e a sonoplastia são fundamentais para dar corpo à comicidade da peça. Num cenário extremamente clássico e simples existem pormenores encantadores como a seta voando nas mãos de alguém ou a bicicleta surgindo em contra-luar a pedir meças à Amblin de Spielberg. Ricardo Neves-Neves consegue uma difícil puerilidade quase de marionetas, devolvendo a inocência aos adultos e deixando as crianças um pouco atrevidas rindo-se dos amores reunidos, à boa maneira das comédias oitocentistas.
A Mary
Poppins (Robert Stevenson, 1964) teria gostado desta encenação!
6 de março de 2025
«A
Família Addams» – o Musical. Libreto: Marshall Brickman e Rick Elice, segundo
as figuras criadas por Charles Addams. Música e letras: Andrew Lippa.
Encenação: Ricardo Neves-Neves. Direcção musical: Artur Guimarães. Tradução:
Ana Sampaio. Adaptação das canções: Michel Simeão. Com Alexandre Carvalho (Tio
Fester), Ana Brandão, André Lourenço, Artur Costa, Brienne Keller (Wednesday),
Dany Duarte (Lucas), Frederico Amaral, Irma, Joana Manuel (Morticia), João
Maria Cardoso (o irmão Pugsley), José Lobo, Leonor Rolla, Margarida Silva,
Rogério Maurício, Ruben Madureira (Gomez), Samuel Ferreira Alves, Sílvia Filipe
e Sofia Loureiro.Coreografia: Rita Spider. Cenografia: Catarina Amaro.
Guarda-roupa: Rafaela Mapril. Desenho de luz: Paulo Sabino. Desenho de som:
Sérgio Milhano e Frederico Pereira. Sonoplastia: Sérgio Delgado. Assistência de
encenação: Diana Vaz. Direcção vocal e assistência de direcção musical: Carlos
Meireles. Produção: Força de Produção. Teatro Maria Matos
Quintas-Feiras às 19h00 | Sexta e Sábado às 21h00 | Sábados e Domingos 16h30
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