Sempre existe a penumbra da inquietação, talvez mesmo uma insolvência
moral nas paisagens de José Cardoso Pires. Não temos a certeza onde estamos,
onde nos devemos segurar. Contudo, o lugar final é certo. Um encontro desabitado. Geração de 45. Anos 60.
Catorze breves capítulos centrados na confissão nocturna entre
amigos. À beira de uma praia, na berma de uma estrada, com uma sombra sobre a
figura de Cecília. O Jornalista escuta o Seu Amigo, Daniel, que vai refazendo a
paisagem de memória, essa tal moralidade que parece não ter solução.
«Assim, a sombra de Cecília paira
sobre mim e o Meu Amigo, dois conversadores nocturnos sentados sob o alpendre
duma casa de praia. É por enquanto uma sombra, um contorno de mulher, se quiserem.
Esse contorno compõe-se de instantes de memória, deslocados no tempo e na
distância, tal como sucede com os farolins das embarcações de pesca que andam
ao largo: existem mas levantam-se e desaparecem ao sabor da ondulação. É necessária
a memória (esse terceiro plano ou esse poder de recriar que é, ainda, memória,
cheiro e reconhecimento) para situar os farolins dos barcos no verdadeiro lugar
em que se encontram e construir, para além dos nossos olhos, todo um rosário de
luzes boiando nas águas em trevas. Então poderemos traçar o desenho exacto dum
cerco de pesca, uma campanha de homens sonolentos, o enorme saco de rede que
devora os peixes no próprio ventre do mar…»
Em José Cardoso Pires a solução encontra-se sempre na
imagem, ou no seu reflexo cognitivo. (Não é difícil de compreender por que é um autor tão cinematográfico.)
Em «Lavagante», a fragmentação do texto alterando
anacronicamente a respectiva localização temporal e geográfica; a ideia de que seria um texto ainda distante da obsessiva correcção usualmente praticada pelo
autor, leva-nos a um mundo opressivo, também ele fragmentado pela perseguição
de um regime predador. Um mundo dramático e também teatral onde a sedução, a
perseguição e a predação são traçados em planos concêntricos mas enviesados
perante o leitor. Será que a sedução, a perseguição e a predação fazem parte do
mesmo jogo? Do jogo em que o lavagante – de tenebrosa memória, paciente e
obstinado – seduz com alimento o safio no seu próprio esconderijo para depois
melhor o desfrutar?
É muito interessante observar a estratégia do escritor em abrir o jogo logo no início do segundo capítulo, enquanto o belo filme de Mário Barroso (2025), livremente adaptado por António-Pedro Vasconcelos, revela a parábola do crustáceo apenas no final, como alegoria triste, um nefasto epílogo amoroso para um país a braços com a insolvência do fascismo.
jef, dezembro 2025

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