Da
escritora Annie Ernaux apenas li o livrinho n.º 16 da colecção miniatura dos Livros
do Brasil «Uma Paixão Simples» (2020). E fiquei preso ao nome da autora e ao
modo de ficcionar a sua própria realidade biográfica usando os factos com uma
delicada mas crua frontalidade sem necessitar de adjectivos ou metáforas
gongóricas. Um jeito de tratar a questão sexual e erótica feminina sem pedir
desculpa de serem elas “a força do sexo fraco”.
A
realizadora Audrey Diwan traduz um outro romance da escritora e dá à acrtiz Anamaria
Vartolomei a supremacia dramática e as superioridades intelectual e moral de
representar a jovem e determinada estudante de literatura francesa, Anne, que
fica grávida numa altura que a impedirá de concretizar aquilo que ela sempre
desejou ser. Anne vive longe dos grandes centros e numa França dos anos 60 do século passado que criminaliza
o aborto de modo irremediável. Anne nasce em 1940, tal como a escritora, e diz
frontalmente ao professor que lhe aconteceu aquilo que transforma as mulheres em
donas de casas. Afirma-lhe ainda que já não pretende seguir a carreira lectiva
mas muito simplesmente a de escritora.
Seguimos,
a par e passo, toda a ansiedade de Anne, todas as suas tentativas frustradas, o
percurso de penitência e sacrifício para atingir o seu intento que é,
simplesmente, ingressar na carreira académica evitando uma gravidez casual e de
todo imprevista e não desejada.
Para
aumentar a ansiosa consciência do espectador desta absoluta injustiça, a
realizadora filma numa espécie de quadrado em jeito de 35 mm, cola a câmara ao corpo a transformar-se de Anne, à sua correria
escondida mas desenfreada, ao modo expressionista e insubmisso da acriz Anamaria
Vartolomei, ao seu belíssimo olhar azul, simultaneamente, cândido e insubmisso,
num acto puro e frontal de representação dramática e de consciencialização
política.
Relembramos
que a interrupção voluntária de gravidez foi legalizada em Portugal após
referendo realizado em 2007, deixando de ser um dos ditos «assuntos fracturantes»
da sociedade portuguesa.
«O
Acontecimento» obtém o Leão de Ouro para Melhor Filme no festival de Veneza, em
2021. Curiosamente, Sandrine Bonnaire que enche todo o filme «Sem Eira Nem
Beira» de Agnès Varda (1985), e que também venceu o Leão de Ouro, regressa agora
à cidade de Veneza para representar o papel de Gabrielle, mãe esforçada mas
carinhosa de Anne.
jef,
janeiro 2022
«O Acontecimento» (L'Événement) de Audrey Diwan. Com Anamaria Vartolomei, Kacey Mottet-Klein, Sandrine Bonnaire, Louise Orry-Diquero, Louise Chevillotte, Pio Marmaï, Anna Mouglalis, Fabrizio Rongione, Luàna Bajrami, Leonor Oberson, Julien Frison, Alice De Lencquesaing. Argumento: Audrey Diwan e Marcia Romano, segundo do romance de Annie Ernaux. Fotografia: Laurent Tangy. Música: Evgueni Galperine e Sacha Galperine. Produção: Alice Girard , Edouard Weil. França, 2021, Cores, 100 min.
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