sábado, 29 de janeiro de 2022

Sobre a peça de teatro «Obstrução» de Dimítris Dimitriádis. Teatro Paulo Claro na Politécnica, Lisboa 2022


 


















Sócrates sai da Arcádia e volta a Atenas para deixar a cidade e regressar ao silêncio da pele nua do mar. Visita o silêncio do que nunca escreveu. Os jovens escutam-no. O corpo é o aqui e o agora. A ágora espreita, escandalizada.

Tântalo lamenta-se pelo gelo da fome e da sede do que jamais tocará. Quer chegar-se mas o ali é mais além e os corpos distendem-se, distanciam-se, petrificam. Rejeita o agora. Apenas lamentação.

Narciso nega e nega-se para poder ser só ele. Porém, quando percebe que o outro, o homem, seu semelhante, o deseja como ele se deseja, deixa de mirar o reflexo no espelho da água e entrega-se ao outro, que é homem também. Finalmente, reconhece-se como igual e deixa-se amar.

Aquiles, o herói mortal é ferido. Mortalmente. O sudário é vermelho-sangue. No final, a ferida e o sofrimento são o presente, são o reflexo do corpo. São o próprio corpo que se entrega à morte. Apenas corpo e presente intangíveis, sem futuro. Voltámos ao início. O passado (e o futuro) é como as palavras que nada são, apenas qualquer coisa quando transformadas em acção. Até lá as palavras (e o corpo) são somente presente e o presente não é nada. Antes, é o nada. É o corpo além.

Tal como cada um de nós em cada dia que termina.

O texto é de uma beleza sublime, é como uma homília sacrificial. O traço da vida efémera. Uma representação do futuro inconstante que, talvez, jamais consigamos tocar. É a pele do mundo em nós.

 

jef, janeiro 2022

«Obstrução» de Dimítris Dimitriádis. Com André Loubet, Diogo Freitas, Simon Frankel, Pedro Caeiro, Pedro Lacerda. Tradução José António Costa Ideias. Cenografia e Figurinos: Rita Lopes Alves. Luz: Pedro Domingos. Encenação: Jorge Silva Melo M16. Teatro Paulo Claro na Politécnica. Janeiro 2022

 

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