terça-feira, 6 de março de 2018

Sobre o filme «Tu, que Vives» de Roy Andersson, 2007



















«Deleita-te então, tu, que vives, com este lugar aquecido pelo amor antes que o funesto Letes te banhe o pé fugidio.»

A epígrafe vem de Goethe e Letes (ou Lete) vem de uma estranha alegoria dessa Grécia antiga e fantasiosa. Rio ou fonte do Esquecimento, afluente do Hades, filha de Eris, deusa da Discórdia. Quem bebesse da sua água esquecia a vida anterior, terrena e subterrânea, e podia abraçar a nova existência. Platão sabia isso.

No filme, ouve-se insistentemente «Amanhã também é dia…». Um vago e triste plágio da frase de Scarlett O’Hara. O amanhã não como recomeço prometido mas como descrença adiada por mais um dia. O médico psiquiatra diz que está cansado de tentar fazer felizes pessoas más. A namorada do guitarrista tem um belo sonho onde se casa e é felicitada por uma multidão feliz que vê a casa dos noivos levantar amarras. Os músicos de uma banda militar fazem ensaios nas suas próprias casas, apesar do som, da família, dos vizinhos. O empregado do bar toca a sineta e anuncia que é a hora para o último pedido. A humanidade deve esquecer a sua vida anterior e olhar para o céu de onde chegará o deus que desembaraçará a tragédia do dia-a-dia.

Este pode ser o sumário deste filme de intimidade escrutinada pela sociedade; cenários rigorosamente construídos, de marcações de cena milimétricas; guarda-roupa, cores, iluminações tão precisos que as palavras (tão importantes!) podiam ser dispensadas. Como nos filmes nostálgicos de Buster Keaton, Charlie Chaplin ou Jacques Tati. Porque os filmes de Roy Andersson são sempre comédias trágicas sobre o futuro que não resolve o passado. Sobre o Esquecimento que não resolve a Discórdia.

jef, março 2018
                                                            
«Tu, que Vives» (Du Levande) de Roy Andersson. Com Jessika Lundberg, Elisabet Helander, Björn Englund, Leif Larsson, Ollie Olson, Kemal Sener, Hakan Angser, Birgitta Persson, Gunnar Ivarsson. Fotografia: Gustav Danielsson, Música: Robert Hefter. Suécia, 2007, Cores, 90 min.

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