«Deleita-te então, tu, que vives, com este lugar aquecido
pelo amor antes que o funesto Letes te banhe o pé fugidio.»
A epígrafe vem de Goethe e Letes (ou Lete) vem de uma
estranha alegoria dessa Grécia antiga e fantasiosa. Rio ou fonte do
Esquecimento, afluente do Hades, filha de Eris, deusa da Discórdia. Quem
bebesse da sua água esquecia a vida anterior, terrena e subterrânea, e podia
abraçar a nova existência. Platão sabia isso.
No filme, ouve-se insistentemente «Amanhã também é dia…». Um
vago e triste plágio da frase de Scarlett O’Hara. O amanhã não como recomeço
prometido mas como descrença adiada por mais um dia. O médico psiquiatra diz
que está cansado de tentar fazer felizes pessoas más. A namorada do guitarrista
tem um belo sonho onde se casa e é felicitada por uma multidão feliz que vê a
casa dos noivos levantar amarras. Os músicos de uma banda militar fazem ensaios
nas suas próprias casas, apesar do som, da família, dos vizinhos. O empregado
do bar toca a sineta e anuncia que é a hora para o último pedido. A humanidade
deve esquecer a sua vida anterior e olhar para o céu de onde chegará o deus que
desembaraçará a tragédia do dia-a-dia.
Este pode ser o sumário deste filme de intimidade
escrutinada pela sociedade; cenários rigorosamente construídos, de marcações de cena milimétricas; guarda-roupa, cores, iluminações tão precisos que as
palavras (tão importantes!) podiam ser dispensadas. Como nos filmes nostálgicos
de Buster Keaton, Charlie Chaplin ou Jacques Tati. Porque os filmes de Roy
Andersson são sempre comédias trágicas sobre o futuro que não resolve o
passado. Sobre o Esquecimento que não resolve a Discórdia.
jef, março 2018
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