E um ano depois de «Um Cão Andaluz» surge
«A Idade de Ouro». Afinal, havia sucessor na fama, na irreverência, na
liberdade de filmar. No espanto. Mais Buñuel que Dali, já com uma verba substancial
em francos cedidos pelos excêntricos Viscondes de Noailles (mecenas também de
Man Ray e Jean Cocteau), em vez das pesetas da mãe Buñuel. Produção em grande. Argumento
com uma possível história a ser seguida. Um escândalo. Apenas treze dias em
cartaz na cidade de Paris, em vez dos oito meses do filme anterior. O cinema atacado
por grupos de direita. Petardos lançados. Cadeiras partidas. 50 anos de
proibição. Só em 1982 foi visto em Portugal.
Luis Buñuel consegue o impossível. Levar o
segundo filme até ao patamar do primeiro em conceito estético, em discussão
ética. Talvez mesmo ultrapassando-o, quem o poderá afirmar?
Numa ilha deserta os escorpiões fazem pela
vida (ou pela morte). Tal como o grupo indigente de bandidos. Tal como um grupo
de bispos que, em tempo, passam a esqueletos. Um conjunto de altos dignitários
desembarcam para ali lançar a primeira pedra de Roma Imperial, mas o discurso é
interrompido pelas cenas de afecto apaixonado de uma mulher (Lya Lis) e de um homem
(Gaston Modot) no meio da lama. Ela é banida, ele vai preso, mas reencontram-se
numa festa que não é perturbada pelo guarda que mata com tiros de caçadeira o
próprio filho. Eles reencontram-se mas o amor aproxima-se da morte e da não
consumação. Ela chupa libidinosamente o pé de uma estátua de um deus clássico,
ele acaricia-se entre as penas brancas saídas de uma almofada esventrada. Parecem
apaixonadamente desesperados. Uma vaca deve sair da cama. Um bispo, defenestrado,
assim como uma girafa e um velho arado. Entretanto, no castelo de Séligny, as
orgias sucedem-se, como em «120 Dias de Sodoma» de Sade. Mas o Duque de Blangis
é Cristo!
A revolução e a psicanálise, dois dos
motes do surrealismo, estão lá. De Luis Buñuel, tudo. A surpresa, a velocidade
das cenas, as personagens como que suspensas ou encarceradas nos seus desejos.
Também os animais, as cordas, os objectos como personagens ou como vítimas, o
amor desvairado, a impossibilidade do amor e a morte, interligados, a igreja e o
poder. A narrativa que acolhe o inexplicado como vocação e adesão da lógica de
quem assiste… Está lá tudo como estará em «Este Obscuro Objecto de Desejo»,
o último filme, em 1977.
O que representará este filme, afinal, não
para a História do Cinema mas para o espectador que o vê hoje, numa sala de
cinema, em horário comercial, depois de sair do trabalho e antes do quotidiano
o invadir novamente?
jef, agosto 2019
«A Idade de Ouro» (L’Âge d’Or) de Luis
Buñuel. Com Lya Lis, Gaston Modot, Max Ernst, Pierre Prévert, Caridad de
Laberdesque, Germaine Noizet, Duchange, Evardon, Joseph Albert, Marval, Manuel
Ángeles Ortiz, Ibañez, Valentine Hugo, Lionel Salem, Llorens Artigas, Jacques
B. Brunius, Marie-Berthe Ernst, Jacques Prévert, Firmo, Enrique Maula, Mario
Call, Pancho Coll, Simone Cottance, Xaume Miravitlles, Pedro Flores, Jean
Aurenche, Juan Esplandiá, Joaquin Roa, Pruna e a voz off de Paul Éluard.
Argumento: Luis Buñuel e Salvador Dali. Fotografia: Albert Duverber. Música:
Georges Van Parys, Mendelssohn, Mozart, Beethoven, Debussy, Wagner,
‘paso-doble’ e os tambores de Calanda. Produção: Visconde e Viscondessa de
Noailles. 1930, França, P/B, 62 min.
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