Quando preciso de me reconciliar com a
noite (ou com o dia) e não tenho à mão um filme de Frank Capra vou buscar
«Noite na Terra» (ou qualquer outro filme) de Jim Jarmusch.
Jim Jarmusch tem essa capacidade (tal como
Robert Altman) de fazer filmes ‘multidão’, com dezenas de actores-amigos que
circulam dentro das histórias como se as conhecessem de ginjeira, como se se
sentissem em casa, como se abraçassem toda a real humanidade com o seu teatro
devolvendo, depois, o filme à nossa mais profunda e afectuosa familiaridade.
Uma espécie de código específico a tocar directo o coração do espectador.
Mas entre todos os seus filmes, «Noite na
Terra» é(-me) muito particular. As cinco histórias (Los Angeles, Nova Iorque, Paris,
Roma e Helsínquia) tocam os fusos horários que giram sobre o globo terrestre
até se transformarem, novamente, em dia. E a noite, todos sabemos como é íntima,
e compreende ou aviva as inseguranças, une quem tem de se unir.
Tudo no interior de um (cinco) táxi(s).
É impressionante o confronto cúmplice
hollywoodesco das grandes Gena Rowlands (Victoria Snelling) e Winona Ryder
(Corky). Entre a vida de sonho, toldada pelo cansaço da desilusão, da primeira
e a comédia esperançosa da taxista fumadora que recusa ser estrela de cinema porque
quer seguir uma carreira de mecânica de automóveis.
Em Nova Iorque, o caso carinhoso fica nas
mãos de uma dupla de passageiros-taxistas: Giancarlo Esposito (YoYo) e Armin
Mueller-Stahl (Helmut Grokenberger), onde o passageiro pega desesperado no táxi
e o taxista-imigrante-palhaço vai ficando deslumbrado com a beleza dos
subúrbios de uma enorme capital. Até que surge numa rua a maravilhosa
Rosie Perez (Angela). Um ponto a favor da
ternura e dos palavrões.
Paris, como todas as capitais, é terra de
imigrantes e o taxista da Costa do Marfim (Isaach De Bankolé) não está a ter
uma noite fácil. Vê-se obrigado a expulsar dois passageiros racistas (Emile
Abossolo M’Bo e Pascal N’Zonzi). Logo depois recebe como passageira uma mulher
cega, Béatrice Dalle. São dois desencontrados que se intrigam por curiosidade,
quase se repelem, mas vão-se entregando a uma distante atracção que os deixa
tão próximos quanto deles está a noite parisiense.
Como em Roma sê romano, o taxista é Roberto
Benigni (Gino) e o passageiro, claro, é um padre (Paolo Bonacelli) que tem de o
ouvir em confissão. Mas as confissões de Gino têm o que se lhe diga e a corrida
acaba a meio e a parada não chega a ser cobrada.
Em breve, o amanhecer verá a cidade de Helsínquia
e o taxista Mika (Matti Pellonpää) recebe três passageiros (Kari Väänänen,
Sakari Kuosmanen e Tomi Salmela) tocados pela tristeza, pelo abandono, pelo álcool.
A amizade une-os profundamente e as histórias, cuja realidade dramática
coincidem com a do taxista, dão o mote a uma comovente e alcoolizada troca de
confidências.
Jim Jarmusch é assim, um realizador amorável
cuja generosidade imensa se transforma na rara mestria em saber ‘ceder a autoria’
das obras a quem mais estima e reconhece o valor dramático, o maior ouro artístico.
Claro que este filme não seria o mesmo sem
a melhor banda sonora entregue ao seu amigo de sempre, Tom Waits.
jef, agosto 2019
«Noite na Terra» (Night on Earth) de Jim
Jarmusch. Com Winona Ryder, Gena Rowlands, Giancarlo Esposito, Armin
Mueller-Stahl, Rosie Perez, Isaach de Bankolé, Béatrice Dalle, Emile Abossolo
M’Bo, Pascal N’Zonzi, Roberto Benigni, Paolo Bonacelli, Matti Pellonpää, Kari
Väänänen, Sakari Kuosmanen, Tomi Salmela. Música: Tom Waits. Fotografia: Frederick
Elmes. Argumento: Jim Jarmusch. 1991, EUA, Cores, 123 min.
«Night on Earth» (Original Soundtrack
Recording) de Tom Waits. Canções de Tom Waits & Kathleen Brennan. Produção:
Tom Waits. Arranjos: Tom Waits & Francis Thumm. Island, 1991.
Sem comentários:
Enviar um comentário