domingo, 21 de junho de 2020

Sobre o livro «O Medo» de Stefan Zweig. Tradução: Alice Ogando. Livraria Civilização, 1951

 











Aqui se reúnem quatro das novelas de Stefan Zweig: «O Medo», «Revelação Inesperada de uma Profissão», «Leporella» e «O Alfarrabista Mendel». Em todas está contida a escrita daquele observador, filigranista de gema, que não deixa nada longe do escalpelo: as emoções, a cidade, a moral, o tempo e o modo da sociedade. Stefan Zweig, pan-europeu desinibido, culto e perspicaz, sensível e mordaz, a sua vida e a sua obra centralizam nostalgicamente tudo o que a Europa devia ser e, obviamente, hoje em dia não é. Um mundo culto, burguês, diletante, dir-se-ia despreocupado, talvez distraído ou pouco mobilizado, que se viu destroçado pelo vírus do holocausto que o nazismo disseminou.

Esse universo ideal e sem barreiras para a cultura e depois destruído de modo implacável, está descrito na comovente história do alfarrabista Jacob Mendel que se vê, pelo seu preciosismo amoroso às edições raras, vindas de toda a Europa, espoliado de toda a vida, dos livros, da memória:

«Depois parti, sentindo vergonha diante dessa pobre velha que ficara fiel àquele morto, tão simplesmente, tão humanamente. Pois ela, na sua candura, conservara piedosamente um livro para melhor se lembrar dele, enquanto eu havia esquecido Mendel durante anos, eu, que devia saber que os livros são feitos para unir os homens para além da morte e para nos defender contra o inimigo mais implacável da vida – o esquecimento.»

Em «Leporella» a história vai ao encontro da devoção e da entrega, quase irracionais, quase caninas, de um ser humano por outro. Uma paixão tão fatal e incompreendida que parece apenas receber a compaixão do narrador e, por via deste, de nós, leitores.

No segundo conto é a cidade de Paris que brilha de modo estonteante e despreocupado, fazendo-nos correr atrás de um observador recém-chegado à cidade e que, por passatempo, segue no encalço de alguém que luta contra a miséria. Segue-o para o compreender.

Interessante, em «O Medo», a diferença abismal da visão que Stefan Zweig nos dá da vida mimada de Irene Wagner, familiarmente microscópica, socialmente sem propósito, dissecada passo a passo, diria psicologicamente impressionista, dessa adaptação cinematográfica que Roberto Rosselini fará do texto, em 1954. Aqui desaparecem os laivos oitocentistas e moralmente compensadores e reaparece um ambiente germânico moderno, austero, quase conflituoso, impregnado de sombras e mistério, de silêncios e sombras expressionistas.

Nos textos de Stefan Zweig ressalta sempre uma acuidade narrativa no interior da sua grande humanidade, diria mesmo amabilidade, crucial. Essas são duas das razões que fazem dele um dos meus autores preferidos.


jef, junho 2020

 

 


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